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Corpos deficientes: concepções e
possibilidades na Educação Física

   
*Doutora do Departamento de Métodos e Técnicas Desportivas
**Acadêmica do Curso de Educação Física - Licenciatura Plena

Universidade Federal de Santa Maria
 

 
Luciana Erina Palma*
Simone Teresinha Meurer**

simonemeurer@yahoo.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
    Objetivou-se identificar e analisar as concepções sobre corpo deficiente de escolares de 8ªs séries de uma escola em contexto inclusivo de Santa Maria/RS. Identificou-se que as concepções foram além dos aspectos físicos, apresentando aspectos subjetivos e culturais como fatores de interferência. Ainda que se trate de um recorte da realidade, tal identificação permite inferir que corpos deficientes estão tendo maiores possibilidades para ocuparem seus espaços. Este estudo é um ponto de partida que reflete a importância de compreensão das diferentes manifestações corporais, entendendo que todos, a sua maneira, podem usufruir da atividade física para melhorias na sua qualidade de vida.
    Unitermos: Educação Física. Corpos deficientes. Qualidade de vida.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 106 - Marzo de 2007

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Considerações iniciais

    A Educação Física é uma área do conhecimento que trabalha diretamente com o corpo e suas significações em todos os seus contextos de atuação. Falar em Educação Física geralmente trás vinculada a imagem do dito corpo "saudável" e esteticamente belo. Essa relação poderia ser aceita como verdadeira se não houvesse a diversidade humana; se não existissem os corpos de condições diferenciadas, que não se enquadram no padrão aceito como "normal", e que, de sua maneira, também têm relações e direitos dentro da Educação Física.

    De acordo com o que relata Tolocka (2006), a Educação Física brasileira, durante muito tempo, voltou suas atividades apenas a pessoa inserida na faixa de normalidade populacional, buscando um corpo ideal, colocando á margem de suas atividades as pessoas que não possuíam determinadas aptidões físicas, ignorando totalmente a diversidade que existe na espécie humana.

    Também Porto, Simões e Moreira (2004) discorrem sobre o tema corpo e afirmam que durante boa parte da trajetória histórica da humanidade, o corpo foi tratado e concebido como uma máquina, podendo ser manipulado e esquartejado, pois este corpo era entendido como um objeto.

    Gaio e Porto (2006) dizem que "ao considerarmos os seres humanos como corpos, não podemos negar a presença de corpos que, em sua estrutura biológica, se apresentam incompletos, aqueles que desde o início da história da humanidade até os dias atuais são denominados de deficientes". E, enquanto profissionais de uma área que trabalha com corpos, deve-se buscar preparo e conhecimento sobre como oportunizar os corpos deficientes dentro da prática da atividade física, seja em contexto escolar ou fora dele.

    Os corpos que diferem da condição aceita como normal pela sociedade, enfrentam muitas barreiras pela sua condição de "diferente", conforme destaca Porto (2000, p. 54) :

    O homem, ao fugir dos padrões que o definem como "normal" determinados pela sociedade, é diferenciado não só pelos títulos que recebe como também pelas formas de tratamento que a todo o momento o evidenciam como um ser "deficiente-diferente", por ser um corpo com níveis de capacidade, potencialidade e limite fora da padronização estabelecida. Desse modo, ele torna-se excluído do viver a presentidade.

    Concorda-se ainda com Porto (2000), que esta sociedade está sendo injusta e incoerente com ela mesma, pois rotular um homem de "normal" ou "anormal" é estabelecer limites para este viver e se relacionar com o mundo.

    Observa-se a necessidade de uma compreensão de corpo onde a "deficência-diferença" não sejam enfocadas, pois a partir do momento que olho para um corpo e vejo apenas suas marcas e "defeitos", estou reduzindo-o a suas dificuldades, estou limitando ou até mesmo descartando as suas chances de viver como um ser humano. E, corroborando com Gaio e Porto (2006) destaca-se que é preciso olhar para estes corpos sem piedade; com reconhecimento e credibilidade em suas capacidades para além das limitações que apresentam.

    A história revela que as pessoas que apresentavam algum tipo de deficiência possuíam um tratamento regado pela indiferença pelos corpos ditos "normais". Os corpos "deficientes" eram encarados como endemoniados, incapazes, incomunicáveis e inúteis, enfim, tudo que se relacionava a não capacidade de fazer e, portanto de inferioridade.

    Estes pensamentos e formas de agir perduraram durante muitos séculos e não se tem condições de afirmar que foram erradicados. Felizmente, profundas modificações vêm ocorrendo principalmente em face da política de inclusão desencadeada pelo governo federal, fruto das diretrizes emanadas principalmente do Encontro Mundial de Educação para Todos, realizado em 1990 na Tailândia e da Declaração de Salamanca de 1994.

    Por outro lado, percebe-se que dentro de um senso comum, muitos entendem que o espaço para os corpos deficientes é apenas a escola devido a política de inclusão escolar. Porém, pretende-se destacar neste estudo que estes têm direito de usufruírem todos os espaços da sociedade e, principalmente, dentro dos espaços da Educação Física, por ela ser compreendida como uma possibilidade em prol da qualidade de vida.

    Sabe-se que grande maioria de pessoas com deficiência não freqüentam academias, clubes e aulas de Educação Física porque a sociedade usurpou destas estes direitos, e não porque elas são incapazes. Que elas são capazes, não há duvidas, mas é necessário que o profissional de Educação Física seja capaz de compreender esta capacidade e assim trabalhar com a diversidade humana, entendo o corpo numa perspectiva além da constituição biológica.

    Ao apresentar uma reflexão sobre os corpos deficientes, Porto (2001, p. 134) ressalta:

    Refletir, discutir e propor situações que venham a propiciar qualidade de vida aos deficientes está diretamente associado ás mudanças de atitudes, valores e crenças sobre a forma de olhar e ver um deficiente. E isso só será possível a partir do momento que as pessoas forem vistas como seres humanos cognoscíveis, limitados e não incapacitados, sensíveis e não apáticos, perceptivos e não alheios em sua relação com o mundo.

    Entendendo a escola enquanto espaço formador de opiniões, conceitos e personalidades, objetivou-se neste estudo identificar e analisar as concepções de escolares sobre corpo deficiente.

    Considerou-se que conhecer as concepções sobre corpos deficientes num importante espaço de formação como a escola, seria uma iniciativa válida para investigar como os corpos deficientes estão sendo vistos na sociedade, fornecendo elementos para reflexões e conhecimento dos profissionais que trabalham com estes corpos, especialmente profissionais e acadêmicos da área de Educação Física, atentando a todos para este novo paradigma do corpo, onde ser um corpo deficiente é ser visto, aceito, admirado e aplaudido pelas suas possibilidades e não pelas suas ausências, incapacidades e desvantagens (Gaio e Porto, 2006).

Metodologia

    Foi aplicado um questionário com 8 (oito) perguntas semi-estruturadas aos escolares de uma escola pública da cidade de Santa Maria/RS. A escola caracterizava-se como sendo do contexto inclusiva e participaram duas turmas de 8ªs séries, sendo que cada turma possuía 23 alunos. Uma destas turmas não possuía aluno com deficiência incluído na turma, enquanto que a outra, possuía aluno com deficiência incluído na turma.

    As questões apresentavam várias alternativas, sendo que algumas se referiam a uma compreensão de corpo como sendo este um aspecto físico somente; outras se referiam ao corpo, compreendendo além dos limites físicos, e sim, abordando o corpo como um repertório de manifestação de todos os aspectos do ser humano.

    Cada alternativa assinalada como verdadeira dentro das concepções dos escolares, foi considerado como um ponto. Destaca-se que cada aluno poderia marcar mais de uma resposta em todas as perguntas e assim, não houve um controle numérico sobre as pontuações dos escolares.

    Os questionários foram separados por turma, sendo que inicialmente foram classificados em duas categorias de análise com embasamento em Lüdorf (2005), que apresenta: 1º) corpo concreto, entendido numa visão biológica; 2º) corpo abstrato, com uma visão sociocultural e aspectos subjetivos, entendendo o corpo como uma manifestação do ser humano como um todo. Depois desta separação inicial, identificou-se significativos índices de semelhança entre os dados das duas turmas, sendo então analisados conjuntamente.

Apresentação e discussão dos resultados

    Na turma em que havia aluno com deficiência incluído houve 101 pontuações para concepções de corpo abstrato e 52 pontuações para concepções de corpo concreto.

    Na turma que não havia aluno com deficiência incluído, as pontuações foram as seguintes: 102 pontuações para concepções de corpo abstrato e 33 pontuações para concepções de corpo concreto.

    Destaca-se que ambas as turmas, tiveram dados significativamente semelhantes e, dentre estes destaca-se:

  • as concepções vinculadas ao corpo abstrato foram as mais pontuadas pelas duas turmas;

  • a importância de corpo foi vinculada ao bem-estar que este possibilita, sendo que o significado de bem-estar foi vinculado à fatores subjetivos e abstratos como harmonia com o próprio corpo, atitudes e personalidade;

  • a concepção de corpo mais pontuada não apresentou relação com estética, sendo que fatores concretos como beleza física, roupas da moda, musculatura definida não apresentaram pontuação significativa; corpo perfeito foi considerado como aquele corpo com o qual você se sinta bem, e não

  • o corpo esteticamente perfeito, ou seja, dentro de uma concepção abstrata;

  • em relação ao corpo deficiente, ambas as turmas pontuaram aspectos subjetivos e positivos como: a possibilidade de sucesso destas pessoas independe do seu corpo; são pessoas que poderão ter sucesso como outra qualquer; são pessoas que podem alcançar a felicidade e superar suas dificuldades;

  • ambas as turmas pontuaram de maneira significativa a possibilidade da pessoa com corpo deficiente participar das aulas de Educação Física e atividades físicas.

    Percebeu-se que as duas concepções de corpo apresentadas em forma de questionário para os escolares (corpo concreto e abstrato) foram pontuadas de maneira bastante diferenciadas. Enquanto corpo abstrato foi intensamente pontuado; corpo concreto teve pouca pontuação. Diante disso, acredita-se que estes escolares estejam percebendo algumas questões referentes ao corpo e a diversidade humana, uma vez que, por vezes de maneira consciente; outras de forma inconsciente, estes manifestaram terem um discernimento claro sobre como concebem o corpo, bem como demonstraram clareza em seus posicionamentos e concepções em relação ao corpo deficiente.

    Pode-se inferir que as questões que se referem a corpos deficientes, são perpetuadas principalmente pela concepção que se tem de corpo. Se a concepção de corpo esta restrita aos aspectos biológicos, estar-se-á restringindo todos os corpos que apresentam uma constituição biológica com limitações. Se a concepção de corpo embasar-se dentro de aspectos abstratos e subjetivos e que consideram um todo, sempre será possível oferecer e criar possibilidades para todos os corpos, independente da condição física.

    Os dados apresentados pelos escolares mostram que as concepções estão, em sua maioria, relacionadas ao que se identificou como corpo abstrato, sendo que esta concepção oferece possibilidades de olhar para o corpo com deficiência e ver as capacidades da pessoa que é este corpo.

    Infere-se que diferentes questões podem ter interferido sobre a pontuação dos escolares e, dentre estas se destaca o contexto inclusivo, que possibilita conviver com a diversidade humana e perceber a pessoa com deficiência em seu dia-a-dia; ver que estas possuem dificuldades como todas as pessoas, sendo que podem superar suas dificuldades e limitações; seu desenvolvimento e progresso na aprendizagem e nas relações com colegas e professores; sua persistência diante das barreiras arquitetônicas e sociais como preconceito, ou seja, permite ver um corpo capaz como outro qualquer, podendo alcançar sucesso, superar as dificuldades, ser felicidade e ter qualidade de vida, independente da constituição biológica caracterizada como deficiente.

    O maior número de escolares pontuaram pela participação do colega com deficiência nas aulas de Educação Física bem como em atividades físicas em geral. E, diante deste fato, pode-se entender que a forma como estes alunos estão realizando suas aulas de Educação Física permitem a participação de todas as pessoas, ou seja, não é trabalhada dentro de forma exclusivista e não enfoca o corpo como uma constituição biológica somente.

    A Educação Física pode ser vista de diferentes formas. Por um lado pode lidar com ideologias "biologicistas", que se preocupam com a estética ou o rendimento físico e técnico do indivíduo, enquadrando o conceito de corpo concreto e, neste caso, a pessoa que apresenta um corpo deficiente, tem grandes chances de ser excluída de todos e quaisquer campos de atuação da Educação Física.

    Por outro lado, a mesma Educação Física pode se propor a trabalhar enfatizando os aspectos históricos, sociais e culturais do indivíduo e do movimento humano e, nessa situação, de acordo com o que apresenta Lüdorf (2005), enfatiza-se o corpo abstrato, e a atividade física assume aspectos como possibilidades de descoberta e revelações no/do corpo; exploração e criação de movimentos e então, a forma como o corpo se apresenta, seja ele "deficiente" ou não, não interfere na sua realização e abre espaços para todos os tipos de corpos, a sua maneira, movimentarem e descobrirem-se enquanto corpos, levando a adquirir melhorias na saúde a na qualidade de vida como um todo.

    Também Gaio e Porto (2006) falam sobre as possibilidades do corpo deficiente nas aulas de Educação Física quando afirmam que abordar o corpo em aulas de Educação Física é, acima de tudo, refletir sobre o que, quando e como ensinar os diversos conteúdos desta área de conhecimento, priorizando um ambiente de cooperação, de expressão de sentimentos, de construção de valores pautados pela ética e pelo direito de todos à experiência do movimento no qual possa predominar o lúdico em detrimento da busca pela perfeição.

    Gaio (2006, p. 161) apresenta um entendimento de que todos os corpos são capazes e afirma:

    Às vezes somos corpo deficientes na sua construção biológica, porém capazes na nossa corporeidade, realizando movimentos diversos e intencionais, explorando nossa motricidade em diversas atividades, conscientes da existência social e cultural do ser humano, e eficiente em diversas tarefas para as quais a vida social organizada nos fornece espaço para participar, como no trabalho, a escola, o lazer e outros.

    Os indícios encontrados neste estudo apontam sobre novas concepções corporais e deficiência, perpetuando a inclusão e a diversidade humana de forma positiva. Porém, sabe-se que estas mudanças não ocorrem como "um passe de mágica", pois dependem de fatores complexos como sistema econômico e mudanças nas contradições e incompatibilidades sociais.(Tolocka, 2006).

    Por outro lado, Gaio e Porto (2006) acreditam que o período de transição é notório, uma vez que novos olhares e atitude em relação aos corpos deficientes estão sendo percebidos. Da mesma maneira, as autoras destacam que a escola é um dos principais espaços para concretizar as mudanças já iniciadas, sendo a Educação Física o cerne das reflexões propostas.

Considerações finais

    Este trabalho, ainda que se trate de um recorte da realidade, permite vislumbrar que as concepções de corpo estão em momentos de mudança. As características históricas de concepções de corpo vinculadas somente ao caráter biológico estão cedendo seus espaços para concepções mais subjetivas, que consideram todas as dimensões do ser humano. Tal identificação, permite inferir que os corpos deficientes estão tendo maiores possibilidades para ocuparem seus espaços e usufruírem seus direitos.

    A Educação Física, enquanto área que trabalha diretamente com o corpo em movimento, tem responsabilidade de oferecer possibilidades e oportunidades para todos os corpos, independente de sua condição, caracterizando-se como um foco promotor de inclusão e de qualidade de vida para todas as pessoas.

    Desta maneira, destaca-se que este estudo é um ponto de partida que reflete a importância de compreensão das diferentes manifestações corporais, entendendo que todos, a sua maneira, podem usufruir-se da atividade física para a melhoria de sua qualidade de vida.

Referências bibliográficas

  • GAIO, R. & PORTO, E. Educação Física e Pedagogia do Movimento: possibilidades do corpo em diálogo com as diferenças. In: De Marco, A. (org.). Educação Física: cultura e sociedade. Campinas, SP: Papirus, 2006.

  • GAIO, R. Para além do corpo deficiente: histórias de vida. Jundiaí, SP: Editora Fontoura, 2006.

  • LÜDORF, S. M. A. A prática pedagógica do professor de Educação Física e o corpo de seus alunos: um estudo com professores universitários. In: Pensar a Prática. Goiás (UFMG), v.8, n.2, 2005.

  • PORTO, E. Corpo-Movimento-Vida: ser "diferente-deficiente". In: Revista Corpoconsciência. Faculdade de Educação Física de Santo André, nº 6, 2000.

  • PORTO, E.; SIMÕES R.; MOREIRA, W. Corporeidade e ação profissional na reabilitação: (des) encontros. In: Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v.25, n.3, p. 101-116, 2004.

  • TOLOCKA, R. E. Educação Física e diversidade humana. In: De Marco, A. (org.). Educação Física: cultura e sociedade. Campinas, SP: Papirus, 2006.

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