A ética do saber cuidar de Leonardo Boff: uma aplicação à Educação Física escolar |
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Professor da Universidade Estadual do Ceará (UECE) Mestre em Educação em Saúde, Educador Físico (Brasil) |
Heraldo Simões Ferreira heraldosimoes@bol.com.br |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 106 - Marzo de 2007 |
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1. Introdução
Hoje, na crise do projeto humano, sentimos a falta clamorosa de cuidado em toda parte. Suas ressonâncias negativas se mostram pela má qualidade de vida, pela penalização da maioria empobrecida da humanidade, pela degradação ecológica e pela exploração exacerbada da violência. Que o cuidado aflore em todos os âmbitos, que penetre na atmosfera humana e que prevaleça em todas as relações! O cuidado salvará a vida, fará justiça ao empobrecido e resgatará a Terra como pátria e mátria de todos (BOFF, 1999, p. 191).
Este ensaio bibliográfico visa responder questionamentos que fizemos no decorrer de nossa atuação como profissional de Educação Física na escola durante 17 anos e que nos levaram a dúvida em relação à finalidade ética da disciplina que atuamos.
Durante esta trajetória, pudemos acompanhar diversas etapas de ensino, da educação infantil, passando pelo ensino fundamental, médio e superior. Nesse espaço de tempo, através dos objetivos da Educação Física, estimulava-se o cuidar do corpo (físico) dos alunos. Posteriormente a Educação Física evoluiu, passando também a cuidar do corpo e da mente de forma conjunta. Porém, sentia-se a falta de algo mais consistente, algo que elevasse a Educação Física, que pudesse transpor seus fins curriculares e envolvesse a preocupação ética com o outro e com o meio ambiente.
Este vazio nos fez refletir e procuramos soluções na literatura específica, entretanto nossas dúvidas não eram saciadas.
A idéia que compartilhamos é a de que a Educação Física pode auxiliar no processo de aprendizagem do cuidar, pois, por se tratar de uma disciplina onde o contato corporal é existente, o lúdico é uma ferramenta constante e a satisfação é percebida, podemos utilizar os momentos da prática e recorrer a atividades que envolvam o cuidar e assim alterar a cultura atual da disciplina. De acordo com Daolio (2004: 9), a Educação Física, "pode ampliar seus horizontes, abandonando a idéia de área que estuda o movimento humano (...) para vir a ser uma área que considera o ser humano eminentemente cultural".
Tal proposta floresceu da experiência do autor, quando ministrou a disciplina de Educação Física Escolar, para o curso de Licenciatura em Educação Física. O conteúdo da disciplina foi modificado, para a introdução da aprendizagem do cuidado ético com o próximo e com o meio ambiente.
A revisão de literatura confirmou que existe uma grande escassez de pesquisas envolvendo a aprendizagem do cuidar ético através da Educação Física, pesquisamos nos bancos de teses e dissertações da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), no endereço eletrônico da CAPES e da NUTESES e nenhum registro foi encontrado.
Entretanto, através da pesquisa entramos em contato com o livro do teólogo Leonardo Boff - Saber Cuidar: A Ética do Humano - Compaixão pela Terra (1999), obra que nos auxiliou muito na estruturação da idéia de propor esta nova percepção da Educação Física. Tal livro será a grande referência deste artigo.
Apesar de acreditarmos na busca incessante por parte dos profissionais de Educação Física em oferecer a aprendizagem do cuidar do bem-estar, da saúde, da boa qualidade de vida, pouco se tem analisado o cuidar ético no que se refere ao próximo e ao ambiente terrestre relacionado à disciplina em questão.
Diante do exposto, resolvemos empreender este estudo com o objetivo de promover uma reflexão acerca da possibilidade do desenvolvimento da ética do ser humano, o saber cuidar do outro e do Planeta Terra através da Educação Física Escolar.
2. Ética e Educação Física
Toda profissão deve obedecer a três princípios básicos de desenvolvimento: a técnica, o aprimoramento profissional e a ética.
A ética, sustentáculo profissional que nos interessa neste artigo, constitui um conjunto e valores morais aplicados especificamente à prática de um ofício.
De acordo com Tojal et al. (2004: 65) o profissional de Educação Física:
é aquele voltado para a prática de um conhecimento especializado em anatomia e fisiologia do corpo humano (...), o que significa contribuir decisivamente para com a saúde e a qualidade de vida do ser humano, daí a necessidade de sua formação ético-humanista.
O debate envolvendo ética e a disciplina em questão resultou na construção do Código de Ética do profissional de Educação Física, obra realizada pelo Conselho Federal desta categoria em 15 de agosto e 2003 (CONFEF, 2003).
O código citado possui como ponto de partida as Declarações Universais de Direitos Humanos e da Cultura, como também a Agenda 21, que situa a proteção do meio ambiente em termos de relação entre homens e mulheres em sociedade.
O código de ética dos profissionais de Educação Física leva em consideração valores como liberdade, igualdade, fraternidade e sustentabilidade com relação ao meio ambiente.
Torna-se evidente, portanto, que a Educação Física deve voltar-se para um ética voltada ao saber cuidar, não só do corpo e da mente, mas também do outro e do meio ambiente.
3. O saber cuidar, segundo Leonardo Boff, e a Educação Física
Leonardo Boff é teólogo e filósofo. Ajudou no processo de formulação da Teologia da Libertação. Foi professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 2002, ganhou em Estocolmo o prêmio Nobel alternativo para a paz.
Uma das preocupações de Boff (1999) é a crise que afeta a humanidade pela falta de cuidado. Para sair desta crise, segundo o autor, precisamos de uma nova ética, ela deve nascer de algo essencial ao ser humano, reside mais no cuidado do que na razão e na vontade.
A Educação Física por sua vez, também sofre pela sua dicotomia, antes orientada pelo cuidar do corpo, depois pelo cuidar do corpo e da mente, porém ambas as propostas individualistas.
Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN's), um dos objetivos da Educação Física é saber cuidar e conhecer o próprio corpo ou, outra citação do texto, cuidar de si mesmo como um elemento integrante do meio ambiente em que vive (BRASIL, 1998).
Em nenhum momento é citado o cuidar do outro. Apresentamos-nos contrários às idéias do texto quando cessam neste ponto. Acreditamos que a Educação Física pode e deve proporcionar o ensino do cuidado com o outro. Entretanto segundo o Coletivo de Autores (1992: 51) "cuidar do corpo significa também cuidar da nova sociedade em construção".
Voltando ao livro de Boff (1999), aqui já citado, o autor comenta a necessidade do ser humano em desenvolver a capacidade de cuidar de si, das pessoas e de toda a natureza, pois a falta de cuidado se apresenta constante em nossos dias. Uma solução seria a busca de uma nova filosofia com enfoque holístico.
Reportando-nos outra vez aos PCN's, e desta vez concordando, o documento reforça a idéia de que "o respeito mútuo, a justiça, a dignidade e a solidariedade podem ser exercidos durante as aulas de Educação Física" (BRASIL, 1998: 34). Esta afirmação nos remete as idéias de Boff (1999) em relação à ética do ser humano e a filosofia holística que prega.
Outra semelhança desponta no que se refere ao meio ambiente, quando os PCN's relatam que o cuidado com nosso planeta pode representar um grande diferencial, pois "desperta para a percepção de que os seres humanos são partes integrantes do meio ambiente" (BRASIL, 1998: 40).
Leonardo Boff (1999) defende a opção pelo cuidado. Cuidar, como ele diz, é mais que um ato, é uma atitude de preocupação, de responsabilidade e de envolvimento afetivo com o outro. As pessoas, não possuem somente corpo e mente, são seres espirituais. Assim, devemos valorizar esse lado espiritual através do sentimento e do cuidado com o nosso planeta.
Relacionando o parágrafo anterior com a Educação Física, observamos que esta disciplina evoluiu em suas propostas, saindo do cuidar apenas corporal, passando a preocupar-se também com os aspectos psíquicos. Porém ainda falta atingir outro estágio, a preocupação com o espiritual, com o cuidado com a vida e com o meio ambiente em que vivemos.
No Brasil, a Educação Física foi influenciada primeiramente pelo higienismo (1889-1930), onde a saúde estava em primeiro plano. Após foi estimulada pela abordagem militar (1930-1945), uma concepção que visava impor à sociedade padrões de comportamento (militar). Depois passa a seguir as orientações da teoria pedagogicista (1945-1964), teoria esta que pregava a disciplina como uma atividade prioritariamente educativa. Um quarto método foi adotado, o da Educação Física competitivista (1964-1984), que prezava pela formação de atletas, possuindo uma finalidade de produzir atletas. Por fim, surgiu a Educação Física popular (dias atuais), onde a inclusão e a popularização da disciplina foram oferecidas à população, sua principal característica é a promoção do lazer e da prática da atividade física como uma educação para a saúde (GHIRALDELLI JUNIOR, 1997).
Apesar destas teorias citadas, acreditamos que existe uma lacuna na Educação Física, uma nova abordagem deve ser urgentemente apresentada, a teoria da Educação Física associada ao saber cuidar.
Mas como deve ser esse cuidado? Boff (1999) relata mais que ter cuidado, o homem é o próprio cuidado, pois, sem ele o homem deixa de ser humano. Cuidado assim pode ser representado pelo carinho, solidariedade, perdão, atenção e cooperação com os outros, animais e com o meio ambiente.
De acordo com o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF), em seu documento sobre a intervenção do profissional:
O profissional de Educação Física é especialista em atividades física, nas suas mais diversas manifestações (...), contribuindo ainda para a consecução da autonomia, da auto-estima, da cooperação, da solidariedade, da integração, da cidadania, das relações sociais, da preservação do meio ambiente (...). (CONFEF, 2002)
Assim, podemos relacionar que a ética preconizada por Boff (1999), o saber cuidar do outro e do ambiente, é considerado uma das intervenções dos profissionais de Educação Física. Para serem atingidos os objetivos de contribuir para a autonomia, auto-estima, cooperação, solidariedade, integração, cidadania e preservação do meio ambiente é preciso saber cuidar.
Leonardo Boff (1999) observa que o capitalismo reinante promove a falta de respeito com as condições básicas do ser humano, pois a exploração visando lucros é a grande ferramenta do sistema atual. Assim é preciso que o cuidado com o próximo seja ativado para o resgate do respeito e do sentimento por todos. Para isso é necessária a ênfase no sentimento, já que a razão está ameaçada pelo capital.
A Educação Física não pode mais ser regida apenas pelo ato de realizar movimentos. É necessária à prática da Educação Física atividades que envolvam os sentimentos. As idéias mecanicistas, biológicas e fisiológicas da disciplina devem ser superadas.
Corroboramos a idéia de Fonseca (2002), quando afirma que precisamos buscar uma perspectiva didático-pedagógica para a ação docente do professor de Educação Física e que esta proposta não se reduza a apenas buscar uma metodologia do tipo receita ou uma didática meramente instrumental, pretendemos propor uma reflexão que supere a idéia do apenas "saber fazer" ou do "como fazer". O que necessitamos são formar alunos questionadores que procurem respostas às questões do "por que e para que fazer?".
Através destas questões, os alunos podem ultrapassar a idéia de cuidar apenas de si, se seu corpo e mente. As respostas podem trazer a reflexão e o cuidar do próximo e do planeta em que vivemos pode ser a solução para o viver bem, em paz e harmonia, a ênfase deve ser no emocional.
É a partir desta ênfase no emocional que o cuidado deve ser priorizado. É com o sentimento que surge simpatia e empatia, a cooperação, a integração e os resultados da solidariedade, de acordo com Leonardo. É o sentimento que faz o homem amar tudo em sua vida.
Acreditamos, assim como Cury (2003) que professores que possuem sensibilidade podem falar ao coração de seus alunos e contribuem assim para o desenvolvimento da capacidade de contemplação do belo, do perdoar, do fazer amigos e do socializar. A Educação Física pode gerar esta sensibilidade nos alunos através de práticas específicas, como os jogos cooperativos, e assim ensinar a cuidar do outro e do nosso ambiente com amor.
O amor, de acordo com as idéias de Boff (1999), manifesta-se no ser humano gerando a família e por conseqüência a sociedade. Se não acontecer o amor, o coletivo inexiste. A competição é negativa, pois só existe um vencedor, ela nega o amor ao próximo. Sem amor, o homem não possui o cuidado.
A Educação Física atual nega a exclusão e procura um substituto da competição. Busca a prática da atividade física regada pelo sentimento e pelo amor.
De acordo com Chalita (2005: 16):
o amor pode justificar, determinar, agregar, permitir, superar, prolongar, solicitar. O amor também condena, absolve, revela, esconde, simula, expõe. O amor orienta, desnorteia (...) No amor estão presentes, ao mesmo tempo os quatro elementos e os cinco sentidos (...) Por ele se luta, se ganha, se perde, se joga, se brinca, se chora, se vive, se morre (...) Ele ataca e defende, derruba e sustenta, grita, silencia.
A Educação Física é o retrato da colocação de Chalita (2005), nela é realizada a luta, o ganhar, o perder, o brincar, o jogar. Nela se expressam sentimentos diversos como o sorrir, o chorar, experimenta a alegria e a tristeza. Tudo isso, com amor, para atingir o cuidado ao próximo e ao meio ambiente.
Boff (1999) acredita que é na ética que o equilíbrio deve ser alcançado, para atingir objetivos que busquem melhoras para o planeta e para os excluídos.
O cuidado com os oprimidos deve ser realizado no ato do amor. De acordo com Freire (1987: 36), "só nesta plenitude é que a solidariedade verdadeira se constitui". A Educação Física, através de projetos sociais promovidos com alunos, pode auxiliar os oprimidos através de palestras sócio-educativas, promoção de momentos de lazer e prestação de serviços de saúde.
4. Reflexões conclusivas
Leonardo Boff (1999) defende o ponto de vista de que a espiritualidade deve vir a frente da religião. Para o autor, a espiritualidade é capaz de ligar, religar e integrar. Compartilhamos a idéia de que religião significa religar com algo, no caso um Ser Divino. Juntamente com o citado autor, aceitamos a idéia de que a espiritualidade deve ser priorizada e não apenas a religião. Através da Educação Física, não podemos oferecer tipos de religião ou muito menos influenciar alunos para esta ou aquela, entretanto podemos estimular a espiritualidade, através do saber cuidar, não somente de si e de seu corpo, como já explanado, mas, sobretudo do próximo e do nosso planeta. Assim é necessário que possamos preservar o meio ambiente, cuidar dos outros e viver com amor.
A questão relacionada à ética proposta por Boff (1999), deve estar presente nos debates sobre Educação Física e ética, pois representa uma nova teoria para esta disciplina envolvendo o cuidar do outro e do meio ambiente.
Propomos aos professores de Educação Física que reflitam sobre sua prática, que ultrapassem a tendência apenas técnica e física desta modalidade de ensino, que através de suas aulas possam oferecer uma aprendizagem do saber cuidar do próximo, que apliquem seus conteúdos proporcionando o saber cuidar do meio ambiente.
Sugerimos aos mesmos, um esforço maior para adquirir conhecimentos ético-humanistas, buscando o desenvolvimento integral de seus alunos, superando o cuidar físico e atingindo o cuidar do outro e do planeta em que vivemos.
Encerramos este debate, ainda inacabado, aberto a novas discussões, destacando a mensagem trazida pela fábula do mito, trazida por Boff (1999) em seu livro, aqui já mencionado:
Certo dia, ao atravessar um rio, Cuidado viu um pedaço de barro. Logo teve uma idéia inspirada. Tomou um pouco de barro e começou a dar-lhe forma. Enquanto contemplava o que havia feito, apareceu Júpiter.
Cuidado pediu-lhe que soprasse espírito nele. O que Júpiter fez de bom grado.
Quando, porém Cuidado quis dar um nome à criatura que havia moldado, Júpiter o proibiu. Exigiu que fosse imposto o seu nome.
Enquanto Júpiter e o Cuidado discutiam, surgiu, de repente, a Terra. Quis também ela conferir o seu nome à criatura, pois fora feita de barro, material do corpo da terra. Originou-se então uma discussão generalizada.
De comum acordo pediram a Saturno que funcionasse como árbitro. Este tomou a seguinte decisão que pareceu justa:
"Você, Júpiter, deu-lhe o espírito; receberá, pois, de volta este espírito por ocasião da morte dessa criatura. Você, Terra, deu-lhe o corpo; receberá, portanto, também de volta o seu corpo quando essa criatura morrer. Mas como você, Cuidado, foi quem, por primeiro, moldou a criatura, ficará sob seus cuidados enquanto ela viver. E uma vez que, entre vocês há acalorada discussão acerca do nome, decido eu: esta criatura será chamada Homem, isto é, feita de húmus, que significa terra fértil".
Referências bibliográficas
BOFF, L. Saber Cuidar: ética do humano - compaixão pela Terra. Petrópolis: Vozes, 1999.
BRASIL, Secretaria de educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais - Educação Física. Brasília: MEC, 1998
CHALITA, G. Pedagogia do Amor: a contribuição das histórias universais para a formação de valores das novas gerações. São Paulo: Gente, 2005.
COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do Ensino da Educação Física. São Paulo: Cortez, 1992.
CONFEF, Conselho Federal de Educação Física, Intervenção do Profissional de Educação Física. Rio de Janeiro: CONFEF, 2002.
________, Conselho Federal de Educação Física. Código de Ética. Rio de Janeiro: CONFEF, 2003.
CURY, A.J. Pais brilhantes, professores fascinantes. Rio de Janeiro: Sextantes, 2003.
DAOLIO, J. Educação Física e o conceito de cultura. Campinas: Autores associados, 2004.
GHIRALDELLI JUNIOR, P. Educação Física Progressista. São Paulo: Eduções Loyola, 1998.
FONSECA, D.G. Educação Física: para dentro e para além do movimento. Porto Alegre: Mediação, 1999.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1987.
TOJAL, J.B. DA COSTA, L.P. BERESFORD, H. Ética profissional na educação Física. Rio de Janeiro: Shape, 2004.
revista
digital · Año 11 · N° 106 | Buenos Aires,
Marzo 2007 |