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A prática docente (desvalorizada) em
Educação Física no contexto neoliberal

   
Mestrando PPGE-UFRJ, Rio de Janeiro
(Brasil)
 
 
Bruno Gawryszewski
brunog81@yahoo.com.br
 

 

 

 

 
Resumo
    Este trabalho se dedica a refletir sobre a perda de prestígio da profissão docente em um contexto de ofensiva neoliberal, sendo examinada de maneira mais particularizada considerando a situação da Educação Física. A partir de uma revisão bibliográfica sustentada por autores como Oliveira (2004), Leher e Barreto (2003) e Kuenzer (1999) que tematizaram a reestruturação do trabalho docente, pudemos fazer um paralelo com as transformações que a Educação Física enquanto prática docente sofreu nos últimos tempos. A análise histórica e documental nos permite defender que a docência em Educação Física vem sendo posta de lado, dando lugar ao profissional liberal, flexível e autônomo, regulado pelo mercado de trabalho. Entendemos que há uma relação significativa entre a desvalorização da disciplina na educação básica e a formação humana do trabalhador para o atual momento de gerência da crise do capital. Ainda salientamos que as novas diretrizes curriculares para a Educação Física não contribuem para sua revalorização como prática docente.
    Unitermos: Educação Física. Docência. Reestruturação.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 105 - Febrero de 2007

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    A percepção de que a profissão docente vem perdendo seu prestígio e passa por inúmeras dificuldades materiais e simbólicas é recorrente nas leituras dos principais periódicos brasileiros. No cotidiano das escolas são comuns as reclamações dos professores a respeito dos baixos salários, das péssimas condições de trabalho, das amplas jornadas em sala de aula, do desinteresse dos alunos e da própria categoria docente. Essa situação adversa vivida pela profissão já circula como clichê na opinião pública que, entretanto, parece oscilar entre uma solidariedade passiva ("de fato, ganham muito pouco...") e a aceitação de que a categoria é demasidamente grevista e não se preocupa verdadeiramente com os seus estudantes, ecoando a imagem difundida pela grande mídia, pelos organismos internacionais e pelo próprio Estado que, por ocasião de greves e movimentos contra medidas governamentais, acusam os docentes e seus sindicatos de corporativistas e inflexíveis.

    Não se trata de santificar os profissionais de educação e os limites políticos eventualmente presentes nas lutas magisteriais. Contudo, examinando os indicadores salariais e as medidas governamentais para intensificar o trabalho dos professores e ampliar a precarização de vastas parcelas do magistério é indubitável que existem razões objetivas para os conflitos e lutas magisteriais.

    Para romper com o suposto corporativismo e inflexibilidade da categoria docente frente às mudanças do "mundo globalizado" compreendido aqui como uma ideologia (Limoeiro-Cardoso, 1999), os governos lançaram mão de reformas neoliberais com o objetivo de enfraquecer os profissionais da educação. Certamente, uma das medidas de maior impacto na vida dos professores foi a generalização de mecanismos de remuneração por desempenho, em geral aferidos pelo número de estudantes aprovados, em detrimento de contratos salariais por carga-horária e qualificação. Por esses meios, os governos podem reajustar parcialmente a parte variável da remuneração em detrimento do vencimento básico, aumentando a vulnerabilidade dos professores e o poder relativo da administração governamental.

    Outra dimensão do problema - e que será privilegiada no presente estudo - diz respeito às repercussões dessas medidas no plano simbólico da docência. Essa questão será examinada de modo particularizado considerando o caso dos profissionais da Educação Física.

Reestruturação do trabalho docente

    A ascensão, mesmo que tardia em comparação com outros países na América Latina, do neoliberalismo como ideologia dominante condutora da política de Estado, se constitui em um fator determinante para o apontamento dessa reestruturação do trabalho docente, segundo autores como Dalila Oliveira (2004), Roberto Leher e Raquel Barreto (2003) e Acácia Kuenzer (1999). Cada um desses autores indica, à sua maneira, a forma com que a docência foi afetada deliberadamente pelas reformas neoliberais.

    Dalila Oliveira (2004) defende que os anos 90 marcaram uma mudança de paradigma da educação em função da globalização, em que esta passou por mudanças significativas. A autora, chama a atenção de que nos anos 90, as reformas educacionais estariam voltadas para o eixo da eqüidade social, o que segundo Oliveira (2004) "passa a ser um imperativo dos sistemas escolares formar os indivíduos para a empregabilidade" (p.1129). Tal afirmação, ainda segundo a autora, estaria respaldada em medidas governamentais como a centralidade atribuída à administração escolar; o financiamento per capita, com a criação do FUNDEF; a regularidade e a ampliação dos sistemas nacionais de avaliação (SAEB, ENEM, ENC) e a avaliação institucional e os mecanismos de gestão escolares com a participação da comunidade.

    Por isso, diante desse quadro, qualifica o atual processo como uma desprofissionalização do professor, em que o ato de ensinar não seria mais tão importante assim, já que o trabalho docente não seria mais definido apenas como funções em sala de aula, mas também a dedicação dos professores quanto ao planejamento, elaboração de projetos e discussão coletiva do currículo e da avaliação (OLIVEIRA, 2004).

    Outra visão que consideramos substancial relevância é a de Leher e Barreto (2003). Os autores defendem que há um esvaziamento deliberado do trabalho docente. Esse esvaziamento tem se materializado através de deslocamentos semânticos em que o papel do professor, tratado como uma tecnologia, procura ser minimizado ou até mesmo substituído. Assim, o trabalho docente pode ser reduzido a "atividade/tarefa docente". Segundo os autores, para a concepção dos organismos, o dito monopólio do conhecimento do professor poderia ser quebrado pela intensificação do uso das tecnologias de informação e comunicação (TIC), como o uso de softwares, teleaulas, apostilas, gravação em áudio e o ensino à distância.

    Kuenzer (1999) refletindo sobre as políticas para a educação superior, destaca a grande transferência das atribuições do Estado para a esfera privada, como a já citada articulação da formação com as demandas do mercado e a flexibilização do modelo tradicional de universidade, que abrange ensino, pesquisa e extensão, acompanhada de um rebaixamento dos critérios de qualidade determinados pelo governo, transferindo o controle do processo para o controle do produto, foram estratégias tomadas para "estimular" um maior investimento da iniciativa privada no ensino superior, com o Estado abandonando seu papel regulador, incumbindo-se apenas de atribuir notas e conceitos meramente formais (instalações físicas, número de livros na biblioteca, qualificação dos professores, número de publicações, alunos formados) adotando uma concepção economicista de produtividade, medida por modelos quantitativos (KUENZER, 1999).

    Quanto aos cidadãos imersos na exclusão natural do capitalismo, a educação serviria como um instrumento pacificador para que estes não façam mal à mesma sociedade que os exclui. A esses indivíduos, classificados por Kuenzer como sobrantes, bastaria uma educação aligeirada e de baixo custo, formados pelos Institutos Superiores de Educação, para evitar "desperdícios" de recursos e que sejam acompanhados por professores que se disponham a ser divulgadores dos conhecimentos e das tendências do mercado. Este tipo de professor é denominado de tarefeiro, no momento em que à educação é negado o estatuto epistemológico de ciência, reduzindo-o a mera tecnologia a quem compete realizar um conjunto de procedimentos preestabelecidos (KUENZER, 1999).

A educação física no contexto de reestruturação do trabalho docente

    Todas essas medidas repercutiram de modo muito importante na docência da educação física. Ao longo das décadas de 70 e 80, os setores empresariais da Educação Física dirigiram seu olhar ao campo não-escolar para a exploração de um novo filão mercadológico voltado para a classe média e alta, com o intuito de implantar uma política demarcação de territórios ainda não explorados. Àquela altura, as academias de ginástica/musculação começavam a se expandir nas grandes metrópoles do país.

    Assim, os defensores do mercado apressaram-se em visualizar o campo não-escolar (academias de ginástica, escolinhas esportivas, eventos etc.) como uma "mina de ouro" a ser explorada ainda numa fase de baixa concorrência e altas taxas de retorno. O ciclo da ofensiva neoliberal nos anos 80 foi coroado com a aprovação da Resolução 03/87 pelo Conselho Federal de Educação que possibilitou a criação dos cursos de Bacharelado em Educação Física, segundo Sartori (s/d) com o objetivo de "buscar maior correspondência com as demandas de mercado" (p.7).

    A perspectiva do Bacharelado apontava para a fragmentação da formação do professor de Educação Física. Buscava moldá-lo enquanto um profissional liberal, flexível, trabalhador modelo da precarização do trabalho evidenciado no final do século XX e ainda promovia uma descaracterização epistemológica da área, visto que o objeto dela é a prática docente, independente do seu espaço de atuação.

    A adaptação aos novos contornos da sociedade é evidenciada pela defesa do convívio freqüente com riscos e desafios determinados pelo mercado. Nascimento (2002) coloca que na medida em que surgem novas e diferentes ocupações, exigem do indivíduo "qualificação tecnológica acima de tudo, bem como a reciclagem de conhecimentos e a diversidade de aptidões" (p.47).

    Aliás, o dito mercado acaba tomando forma de um "Grande Irmão" que controla os destinos daqueles que são obrigados a vender sua força de trabalho como única mercadoria que possuem para buscarem sua sobrevivência. Segundo as palavras de Nozaki (2005) "o mercado de trabalho torna-se uma noção ideológica que visa a adaptar o trabalhador às condições de mais alta precariedade" (p.11, grifo do autor).

    Ao mesmo tempo em que ocorria um "boom" nos espaços privados de práticas corporais, a desvalorização do magistério era mais visível fruto dos ajustes estruturais do neoliberalismo e, no interior dessa desvalorização, a secundarização da Educação Física enquanto disciplina escolar. Admitimos que esta pode nunca ter desfrutado uma situação de máxima prioridade, porém seu prestígio no tocante à formulação de políticas para a Educação já foi maior, vide a formação pautada pelo higienismo, eugenismo e o tecnicismo entre os anos 20 e 70 (CASTELLANI FILHO, 1991).

    As análises do setor privatista vão se pautar que a culpa da desvalorização da Educação Física é apenas dela mesma. O papel da Educação Física enquanto difusora das atividades físicas não conseguiria mais convencer mais convencer "a clientela" da sua importância. A forma repetitiva dos conteúdos trabalhados e o despreparo dos professores desmerecem a atividade e o profissional que atua com a mesma. Por fim, a escola seria o local que mais recebe os professores porque estes ainda não estariam preparados para lidar com as mudanças do mercado (OLIVEIRA, 2000).

    Contudo, partimos de uma ótica diferenciada, levando em consideração o reordenamento do mundo do trabalho com a formação de um trabalhador adaptado às necessidades do capital. Se antes a disciplina estava subordinada a formação de um corpo disciplinado, a adestração a repetição de exercícios físicos com vistas à aptidão física, funcional ao padrão fordista, esta caracterização não é mais central para a formação do trabalhador de novo tipo para o capital, que precisa de disciplinas com alto conteúdo cognitivo e interacional, de modo que possa trabalhar com a capacidade de abstração, raciocínio lógico, poder de decisão, trabalho em equipe, entre outros. Portanto, sob o ponto de vista imediato, a Educação Física não faria parte do projeto pedagógico dominante para a escola pública, mas como um plus na medida em que a oferta de atividades esportivas, instalações amplas, formação de equipes de competição, se apresenta como um diferencial para a formação de alunos nas escolas particulares (NOZAKI, 2004).

    Segundo nossa reflexão, a última grande ofensiva do setor neoliberal foi a intervenção direta no processo de construção das atuais diretrizes curriculares. Depois de seis anos de diversas idas-e-vindas, a versão final do documento que orienta a formação dos futuros professores/profissionais de Educação Física define que a função do professor/profissional de Educação Física seria fomentar um estilo de vida ativo nas pessoas (art. 4o).

    Este tipo de formulação desconsidera as relações concretas e sociais de produção da vida humana, colocando a questão do sedentarismo como uma responsabilidade individual e subordinando a educação à saúde. E, por fim, insistimos na reivindicação da docência como identidade profissional da Educação Física.

Referências

  • BRASIL. CNE/CES. Resolução nº 7, de 31 de março de 2004. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Educação Física, em nível superior de graduação plena.

  • CASTELLANI FILHO, Lino. Educação Física no Brasil: a história que não se conta. 3a ed. Campinas: Papirus, 1991.

  • KUENZER, Acácia. As políticas de formação: A constituição da identidade do professor sobrante. Revista Educação e Sociedade, Campinas, ano XX, n? 68, dez/1999, p. 163-183, dez/1999.

  • LEHER, Roberto, BARRETO, Raquel. Trabalho docente e as reformas neoliberais. In: OLIVEIRA, Dalila (org.) Reformas Educacionais na América Latina e os trabalhadores docentes. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

  • LIMOEIRO-CARDOSO, Miriam. Ideologia da globalização e (des)caminhos da ciência social. In: GENTILI, Pablo (org.) Globalização excludente - desigualdade, exclusão e democracia na nova ordem mundial. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

  • NOZAKI, Hajime T. Educação Física e reordenamento no mundo do trabalho: mediações da regulamentação da profissão. Tese de doutorado (Doutorado em Educação), Niterói: Faculdade de Educação, Universidade Federal Fluminense, 2004.

  • _________. Mundo do trabalho, formação profissional e conselhos profissionais. In: Formação Profissional em Educação Física e Mundo do Trabalho. Grupo de Trabalho Temático / CBCE - Formação Profissional e Campo de Trabalho. Vitória, 2005.

  • NASCIMENTO, Juarez. Formação profissional em Educação Física: contexto de desenvolvimento curricular. Montes Claros: Unimontes, 2002.

  • OLIVEIRA, Amauri A.B. Mercado de trabalho em Educação Física e formação profissional: breves reflexões. Revista Brasileira de Ciência e Movimento, Brasília, v.8, n.4, p.45-50, set/2000.

  • OLIVEIRA, Dalila. A reestruturação do trabalho docente: precarização e flexibilização. Revista Educação e Sociedade, Campinas, v. 25, n? 89, p. 1127-1144, set-dez/2004.

  • SARTORI, Sérgio. Regulamentação da profissão e perspectivas profissionais da Educação Física no Brasil. Disponível em http://mncref.vilabol.uol.com.br/a05.htm, acesso em 3 de março de 2006.

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