efdeportes.com
O brincar das crianças:
aproximações às culturas infantis

   
* Dra. em Historia de la Educación Social Contemporânea
Universitat de Barcelona, 1996; Pos Doutorado - Universitat de Barcelona, 2000
Atualmente professora de Educação Física na Universidade Estadual de Maringá - UEM
Conselheira do Conselho Municipal dos Direitos da Infância e Adolescência de Maringá
Coordenadora do Programa Multidisciplinar de Estudo, Pesquisa e
Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Educadora do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
** Aluna do Curso de Licenciatura em Educação Física, UEM
Educadora do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
Participante do Projeto Brincadeiras com meninos e meninas de e na rua.
*** Aluna do Curso universitário de Economia, UEM
Educadora do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
Participante do Projeto Brincadeiras com meninos e meninas de e na rua.
****Aluna do Curso de Licenciatura em Educação Física, UEM
Educadora do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
Participante do Projeto Brincadeiras com meninos e meninas de e na rua
 
 
Dra.Verônica Regina Muller*
Josilene Maciel Rodrigues**
Lucimar Ribeiro***
Paula Pelegrini****

vm@wnet.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
    Trazemos nesta ocasião reflexões sobre o brincar da criança relacionado às culturas da infância. Um brincar, que além de ser um direito, é também típico desta categoria própria que é a infância, mas que apresenta diferenças em função de seus contextos. Ser criança e ter infância não são sinônimos.
    Unitermos: Brincar. Criança. Culturas infantis.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 104 - Enero de 2007

1 / 1

Introdução

    Neste artigo temos o objetivo de trazer à tona uma temática que vem ocupando nossos estudos1 nos últimos tempos, que é precisamente as culturas infantis. Queremos saber mais sobre as crianças, sobre o seu mundo, sobre as coisas que fazem, pensam, sentem, dizem. Acreditamos ser pertinente este artigo na revista de Educação Física, porque estamos tratando de sujeitos da educação dentro e fora da escola. Além disso, nas tendências últimas da Educação Física, esta está intimamente ligada ao conceito de cultura corporal.

    A infância vem sendo estudada por grandes áreas como a história, a sociologia, a antropologia, a psicologia, o direito, a pedagogia e/ou também por temáticas como a violência, os direitos, os comportamentos, o brincar, o protagonismo, o rendimento físico, escolar e começam também a ser investigadas as culturas infantis no Brasil, pesquisas estas influenciadas principalmente pelo Instituto da Criança da Universidade do Minho - Portugal.

    O lugar de onde nossas reflexões é o da valorização das crianças como sujeitos de direito, em situação peculiar de desenvolvimento, exatamente como garante o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Brasileira no 8.069/1990) e ainda, como produtoras e transmissoras de culturas que devem ser identificadas, potencializadas e preservadas. O sentido mais profundo da cultura é:

    ...construir, com cacos e fragmentos, um espelho onde transparece, com as suas roupagens identificadoras particulares e concretas, o que é mais abstrato e geral num grupo humano, ou seja, a sua organização, que é condição e modo de sua participação na produção da sociedade (ARANTES 1990, p. 78)

    Entre as formas culturais produzidas pelas crianças nos ocuparemos mais especificamente da sua condição de brincar. Brincando um pouco, diríamos que aqui é o lúdico que está em jogo. CAILLOIS (1967) apud LARA e PIMENTEL (2006), argumenta que "os jogos, como fatores e imagens da cultura, criam hábitos, provocam mudanças, oferecem indicações sobre preferências, debilidades, forças e caracterizações de uma civilização". De outro lado, SARMENTO (2003, p. 57) nos alerta para a "perda no tempo da memória histórica dos jogos infantis, que são hoje um patrimônio preservado e transmitido pelas crianças, numa comunicação intergeracional que escapa em larga medida à intervenção adulta".

    O mundo adultocêntrico nos leva equivocadamente a pensar que a cultura é transmitida somente através dos adultos. Experiências como a de CARVALHO (2005) ou a de CARDOSO (2004) não deixam dúvidas que o patrimônio infantil dos jogos ou brincadeiras de rua é bastante transmitido de criança para criança. Como aprendemos com SARMENTO (2003), quando falamos de culturas da infância ou culturas infantis devemos estar atentos às formas culturais produzidas para as crianças e às produzidas pelas crianças.

    Neste trabalho tocamos na rotina infantil que é totalmente determinada pelo mundo adulto e também no que é próprio da infância, que é a sua vivência lúdica. Nos acompanha o entendimento de que as culturas infantis são caracterizadas fundamentalmente por uma questão geracional (falamos de até mais ou menos 12 anos) e "são produzidas numa relação de interdependência com culturas societais atravessadas por relações de classe, de gênero e de proveniência étnica, que impedem definitivamente a fixação num sistema coerente único dos modos de significação e ação infantil" SARMENTO (2003, p.54). Ou seja, apesar das diferenças, se detectam crianças e seus próprios mundos objetivos e subjetivos em todas as culturas e aí está a sua peculiaridade.

A institucionalização das crianças ou o espaço e o tempo determinantes do brincar

    As crianças da atualidade vivem uma institucionalização em sua vida cotidiana, absorvidas por atividades formais (escola) e não formais (entidades que promovem oficinas).

    Como, ou seja, quando, onde e com quem as crianças vão brincar das brincadeiras tradicionais, ou vão criar a partir delas, outras? Como vão aprender a brincar? Todas as crianças brincam, é verdade, todos sabemos. Mas a qualidade destas experiências é absolutamente diferente em função do seu contexto (e nele o espaço e o tempo), do seu conteúdo, da sua forma, da relação dos adultos nesse processo e da relação entre as crianças. O tempo ocupado de muitas crianças é o mesmo tempo de trabalho dos pais. Na escola não brincam, e se brincam, é rapidamente no recreio.

    De alguma forma, a criança acaba brincando, mas o tempo e o espaço estão restritos e, a parte de transmissão de cultura lúdica que devia passar de adulto para criança está praticamente desaparecida pela falta de convivência dos pais e mães com os seus filhos e, por outro lado, porque os espaços institucionais de freqüência das crianças não potencializam o mundo da brincadeira e dos brinquedos.

    Mas, espaço e tempo são só algumas das condições básicas para que as crianças possam brincar com qualidade. Sabe-se de muitos casos onde os recreios representam verdadeiras dores de cabeça aos professores e diretores de escolas, pois apresentam muitas brigas que são resolvidas, em geral, com a presença de adultos pelo pátio e com propostas lúdico-educativas. De outro modo, existem casos em que apesar das crianças serem constantemente atendidas, mesmo assim, há ausência da brincadeira.

    Na parceria com a Comissão Local do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua de Maringá, temos assessorado um grupo de adolescentes tipicamente institucionalizado, isto é, classe pobre, passou a infância e segue até hoje com a agenda cheia, freqüentando a escola formal e no contra-turno, diferentes oficinas de atividades em instituição beneficente. Constatamos que não sabem brincar (assim o reconhecem), e para que brinquem conosco têm a necessidade de planejar, determinar um tempo e um objetivo para aquilo. Eles não trazem um conteúdo de brincadeiras, fruto de suas vivências, nem possuem brinquedos. Se sentem estranhos, algo sem jeito brincando.

    A institucionalização de crianças não é um problema das oficinas que lá se realizam, e sim, muito mais um reflexo do mundo institucionalizado que Paulo Freire em 1974 já alertava que institucionaliza até a injustiça.

Ter e não ter brinquedo ou a heterogeneidade da infância em diferentes classes sociais

    Impossível não ficar sensibilizado diante dessa realidade dura, desigual em suas condições, construída pelos adultos e que condiciona a vida das crianças. Sabe-se que em um supermercado, por exemplo, todas, independentemente de classe social, querem os brinquedos lá expostos. Todas querem os brinquedos exibidos na televisão que vêem todos os dias, mas, nos cotidianos infantis de pobres e ricos há entre outras, esta diferença: na hora de brincar, uns brincam com o que desejam brincar e os outros, brincam com o que tem e principalmente com o que não tem. Imaginam, inventam. Há crianças sem nenhum brinquedo... Na brincadeira da criança há o reflexo da (in)capacidade de compra da família.

    A cultura comercial das crianças apela tanto às crianças porque toma seriamente em conta o jogo, a satisfação e o desejo das crianças. Claramente, ela ajuda a construir o seu jogo, o prazer e desejo, mas também procura compreendê-lo e inserir-se dentro dele. Na pior das hipóteses, ele envolve a exploração (da constatação) cínica (...) de (um) presidente de agência publicitária (...): 'A publicidade no seu melhor faz com que as pessoas sintam que sem o seu produto você é um perdedor. As crianças são muito sensíveis a isso' (KENWAY e BULLEN apud SARMENTO 2003, p.56)

    Ou seja, a criança é mais um consumidor, alvo da mídia. Sinais típicos da contemporaneidade globalizada que se expande com os valores propagados pelos mercados.

    De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (1990), art. 4:

    É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (ECA, 1990)

    Entretanto, as crianças mais pobres não estão conseguindo ter garantidos esses direitos, elas gostariam de ter o brinquedo e não têm, queriam poder brincar, mas estão sem tempo. Para brincar é preciso mais que a natureza biológica. O tempo que sobra para brincar geralmente é no final da tarde depois que retornam à casa ou no final de semana.

Por fim

    Ser criança e ter infância não são expressões sinônimas. Há aspectos comuns sempre relacionados ao próprio da criança e outros diferentes em função da classe social, estes sempre relacionados à capacidade de aquisição material de uns e de outros.

     "A criança torna a vida uma aventura continuamente reinvestida de possibilidade" SARMENTO (2003 p. 63). Cada tempo controlado, planejado pelo adulto para ela sem sua opinião, cada espaço reduzido e cada tempo corrido vão empobrecendo a experiência corajosa, destemida, atrevida, imaginativa, desafiante, enfim, vital do ser humano que leva consigo sua história.

    Eu observava na rua a mãe que arrancou e quebrou em vários pedaços, com impaciência, um pedaço de galho de árvore da mão de uma criança que chorava, implorava para levá-lo à casa. Aquele galho era tudo menos somente um galho para a criança...poderia estar sendo a espada, o mastro de um navio, um chicote domador de feras, uma corda que amarrava um dragão....tantas coisas!!! Pensei logo que se a criança estivesse querendo jogar fora uma espada comprada na loja, a mãe brigaria com ela e a impediria. (Projeto Brincadeiras, 2005)

    Brincar não é só brincar. Faz parte da cultura humana e de seus direitos. Precisamos brincar (talvez seja nossa parte animal) e brincar bem (nossa parte humana e social). As crianças estão levando uma vida muito determinada pelos adultos, por suas relações de trabalho, por sua necessidade de sobrevivência e portanto, por tudo o que implicam suas diferentes classes sociais. Os adultos têm convivido/buscado valores como a segurança, a certeza, a automação, a competição, realizações em tempos rápidos, que vêm muitas vezes acompanhadas de esgotamento e aborrecimento. Comportamentos que trazem em si condicionamentos de adaptação social. Os adultos têm vivido e até desejado, por determinações maiores, adaptação ao mundo em que vivem.

    Muitos adultos, mortos de imaginação, e portanto, sem valorizá-la, correndo e mal humorados, sem tempo, estão sem condição para compreender a linguagem infantil que é predominantemente imaginativa e corporal e sua ação, que é intensamente lúdica. A brincadeira, quando em ambiente adequado e situação aceitável, trabalha com a inquietação, com a dinamicidade, com a incerteza, com tempos elásticos, com o compartilhar, que vêm acompanhados de diversão e prazer.

    Dentro disso, queremos ressaltar uma outra característica da criança que é sem dúvida, sua brincadeira de ser e não ser. Esta é a questão. Ela se transforma, transforma os materiais, as pessoas, o mundo, várias vezes, constantemente. O conceito de transformação na criança é uma potencialidade humana extraordinariamente poderosa. Deveríamos estar mais atentos a isso quando almejamos a transformação social.

    Não ignoramos a violência, a discriminação ou outros comportamentos não desejáveis entre as crianças, mas escolhemos neste artigo falar do que nossa experiência tem mostrado quando num ambiente educativo e amoroso elas convivem com princípios democráticos e com educadores sensíveis, respeitadores, estudiosos e persistentes.

    Nós lutamos pela conscientização, organização e promoção cultural de meninos e meninas como também pelo fortalecimento político de suas relações sociais, para que na medida do possível consigam, sem ingenuidade, intervir na superação das determinações indesejáveis para um mundo mais justo e mais amável. Refletir sobre o seu cotidiano, é uma das maneiras que encontramos para singelamente, neste espaço, contribuir no processo de legitimação do que é próprio da infância e não deve ser desprezado.

    Assim é que, conhecendo mais sobre os sujeitos da educação, entendemos que estamos trazendo mais elementos teóricos para subsidiar as ações e reflexões do professor de Educação Física que tem no brincar dentro e fora da escola, um dos conteúdos próprios de sua área.

Nota

  1. Referimo-nos ao Projeto Brincadeiras com Meninos e Meninas de e na Rua, do Departamento de Educação Física, que está ligado ao PCA (Programa Multidisciplinar de Estudo, Pesquisa e Defesa da Criança e do Adolescente), ao LAPHI (Laboratório de Apoio a Pesquisa Histórica da Infância e Adolescência) e ao GCCL (Grupo de Estudos sobre Corpo, Cultura e Ludicidade), todos da Universidade Estadual de Maringá-PR.

Referências

  • ARANTES, A. O que é cultura popular. 14 ed. Editora Brasiliense. São Paulo. 1990.

  • CARDOSO. S. Memórias e jogos tradicionais infantis: lembrar e brincar é só começar. EDUEL. Londrina. 2004.

  • CARVALHO, Iara C. Brincadeiras de rua: um estudo no bairro Vila Esperança. Monografia de graduação/UEM 2005.

  • ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE- 1990

  • FREIRE, p. Uma educação para a liberdade. Textos marginais. 4 ed. Grafica Firmeza, Porto. 1974.

  • LARA, L. PIMENTEL, G. Resenha do Livro Os jogos e os homens: a máscara e a vertigam, de Roger Caillois. In: Revista Brasileira de Ciências do Esporte. Campinas, v.27, n.2, p.7-188, jan. 2006.

  • MÜLLER, Verônica. R. RODRIGUES, Patrícia C. Reflexões de quem navega na educação social. Uma viagem com crianças e adolescentes. Clichetec. Maringá. 2002.

  • MÜLLER, Verônica R. e MARTINELI, Telma. "O estatuto da criança e do adolescente: um instrumento legal do professor de Educação Física" no XIV CONBRACE - Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte.

  • PROJETO BRINCADEIRAS COM MENINOS E MENINAS DE E NA RUA. Relatórios. Departamento de Educação Física - Universidade Estadual de Maringá. 2006.

  • SARMENTO, Manuel J. Imaginário e culturas infantis. Cad. Educ. Fae/UFPel, Pelotas (21):51-59, jul./dez. 2003.

  • SOARES. N. F. TOMAS. C. Da emergência da participação à necessidade de consolidação da cidadania da infância...In: SARMENTO, M. J. CERISARA. A.B. Crianças e Miúdos. Perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Colecção em foco. Edições ASA. Portugal. 2004. Pgs. 135-161.

Outros artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
Google
Web EFDeportes.com

revista digital · Año 11 · N° 104 | Buenos Aires, Enero 2007  
© 1997-2007 Derechos reservados