Futebol e política externa brasileira: entre o político-identitário e o comercial |
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*Bacharel em Relações Internacionais pela PUC-RJ. **Bacharel em Relações Internacionais pela PUC-MG. (Brasil) |
Alessandro Biazzi* alebiazzi@hotmail.com Virgílio Franceschi Neto** franceschi97@hotmail.com |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 104 - Enero de 2007 |
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Introdução
O objetivo deste trabalho é fazer uma discussão sobre as relações existentes entre o futebol e a política externa brasileira. Partimos da idéia que o futebol não deve ser entendido apenas como um esporte, mas também enquanto um complexo "jogo" de relações sociais que envolvem questões políticas, culturais e econômicas. As ciências sociais brasileiras têm dado cada vez mais importância a este campo de estudo, no entanto seu potencial tem sido subexplorado pela área de relações internacionais.
Neste sentido, o silêncio da disciplina em relação ao esporte, e ao futebol em particular, pode ser explicado por diversos fatores: seu desenvolvimento histórico enquanto uma disciplina norte-americana; sua relação mais estreita com a ciência política do que com a sociologia, antropologia e a história; e a primazia dada às análises de relações interestatais e de viés racionalista1. O desenvolvimento das perspectivas pós-positivistas no início dos anos noventa, que incorporaram pesquisas e teorias já existentes no campo das ciências humanas a fim de ampliar os horizontes da disciplina, têm sido significativos e este trabalho se insere também nesta proposta de que a abertura da disciplina é fundamental para aumentar seu poder explicativo diante de uma realidade internacional cada vez mais complexa e multifacetada.
Esclarecida esta questão metodológica, o recorte de nosso estudo será o da política externa do governo Lula. Estados nacionais se apropriaram historicamente do esporte para promover políticas a nível interno e externo e o atual governo não é diferente. O exemplo mais significativo e que escolhemos como estudo de caso é do "jogo da paz" entre Brasil e Haiti, disputado em agosto de 2004, que fez parte da missão de paz no Haiti (MINUSTAH).
Este exemplo será discutido tendo como pano de fundo as profundas transformações sociais recentes ocorridas com a globalização. Nossa hipótese é a de que o futebol no contexto mais recente pode ser entendido ainda como um instrumento da política externa e de construção da identidade (inter)nacional brasileira mas que também tem que lidar com apropriações econômicas, muitas delas transnacionais, que minam cada vez mais seu enfoque clássico político-identário.
O trabalho divide-se em um histórico da construção da identidade (inter)nacional brasileira através do futebol; o futebol na era da globalização; a política externa do governo Lula e sua relação com o "jogo da paz" no Haiti e por fim uma conclusão. Pretendemos com este estudo contribuir para que o esporte e o futebol sejam vistos como importantes campos de estudos que nos ajudam a explicar uma série de fenômenos sociais no mundo contemporâneo.
O futebol e a construção da Identidade (Inter)Nacional do BrasilOriginalmente um esporte inglês, o futebol chega ao Brasil pelo filho de imigrantes Charles Miller em 18942. Difundindo entre jovens da elite, foi aos poucos se popularizando entre todas as camadas sociais, em particular nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. As fábricas cumpriram um papel significativo neste processo, sendo um dos grandes exemplos a criação do Bangu Athletic Club por dirigentes e empregados ingleses da Companhia Progresso Nacional, que por se localizar no subúrbio da capital, teve que aceitar os empregados para completarem os times e ter adversários3.
Até a década de 30 esta influência crescente do futebol se restringia ao amadorismo e ao lazer de fim de semana. Como afirma Moura, "O momento de consagração da democratização do esporte foi a adoção do profissionalismo no Brasil em 1933. A partir daí, o numero de pessoas que se dirige aos estados para assistir aos matches de futebol não pára de crescer, já não sendo possível ignorar sua importância" 4.
Deste momento em diante, em plena Era Vargas, é que se começa a relacionar o futebol como um aspecto de nossa nacionalidade. Autores como Gilberto Freyre e Mário Filho, contribuíram para naturalizar a idéia de o futebol brasileiro representava o tipo ideal do brasileiro: malandro, versátil e astuto, em contraposição a racionalidade européia5. Freyre chega a ponto de afirmar que se não fosse o processo civilizador do futebol "elementos irracionais de nossa formação cultural"6. poderiam ter transformado o cangaceirismo em gangsterismo urbano, levado a capoieragem a novos enfrentamos com a polícia, e o samba a se conservar primitivo e culturalmente pobre7. Em suas próprias palavras "a malandragem teria se conservado inteiramente um mal ou uma inconveniência"8.
Esta passagem de Gilberto Freire é bastante elucidativa:
"O mesmo estilo de jogar futebol me parece contrastar com o dos europeus por um conjunto de qualidade de surpresa, de manha, de astúcia, de ligeireza e ao mesmo tempo de brilho e de espontaneidade individual em que se exprime o mesmo mulatismo de que Nilo Peçanha foi até hoje a melhor afirmação na arte política. Os nossos passes, os nossos pitus, os nossos despistamentos, os nossos floreios com a bola, o alguma coisa de dança e capoeiragem que marcam o estilo brasileiro de jogar futebol, que arredonda e às vezes adoça o jogo inventado pelos ingleses e por outros europeus jogado tão angulosamente, tudo isso parece exprimir de modo interessantíssimo para os psicólogos e os sociólogos o mulatismo flamboyant e, ao mesmo tempo, malandro que está hoje em tudo que é afirmação verdadeira do Brasil." (FREYRE, apud RIBEIRO, 2003).
Diferente dos anos 20, em que o próprio presidente Epitácio Pessoa solicitou a delegação brasileira, que iria participar de um torneio sul-americano na Argentina, para que não tivesse jogadores negros a fim de preservar a imagem do país no exterior, o futebol passou a ser o veículo da democracia racial. O nosso futebol demonstrava a inclusão do negro na sociedade e a idéia de que o Brasil estaria condenado a ser um grande país justamente por ser híbrido e mestiço.
A ideologia da "democracia racial" invertia a ideologia difundida na elite de que nosso atraso enquanto país viria da mestiçagem, feita em comparação com o maior desenvolvimento dos EUA, em que a separação entre negros e brancos na sociedade é nítida9. Se antes o carnaval, o samba e a capoeira eram escondidos como manifestações culturais genuinamente nacionais, neste momento eles também passam a ser exaltado como representativos de nossa identidade, servindo ao projeto de inclusão pelo alto do governo Vargas, que incentivou ainda o país a sediar torneios importantes, proferiu muito de seus discursos públicos no estádio de São Januário e colocou sua filha, Alzira Vargas, como madrinha dos jogadores nacionais.
Vargas é o primeiro governante brasileiro a se apropriar do esporte enquanto mecanismo de coesão na sociedade constituindo como um meio de aproximar as diferentes regiões e uniformizar práticas em todo território nacional. Não é o propósito do presente estudo, mas é interessante observar que Argentina e Uruguai também construíram suas identidades nacionais através do futebol neste mesmo período histórico. O futebol foi um meio de aproximar diferentes regiões do país e uniformizar práticas em todo território brasileiro. Para a Copa do Mundo de 1938, o governo se preocupa em evitar as antigas cissões e rivalidades entre as diferentes federações de futebol no país (em particular Rio e São Paulo), no país para que os melhores jogadores fossem disputar o torneio na França, na primeira Copa transmitida pelo rádio10. No velho continente "obtivemos o terceiro lugar, a consagração do negro Leônidas da Silva, o 'Diamante Negro', e a crença na potencialidade do nosso futebol."11
Com o fim da ditadura Vargas, o governo Dutra foi capaz de manter acesa a mesma política de seu antecessor através da realização da Copa do Mundo no Brasil em 1950. Durante a Segunda Guerra Mundial o torneio não foi disputado, aumentando ainda mais a importância do evento. Como ressalta Moura, "O campeonato mundial não se restringiria apenas a um confronto entre as melhores seleções do mundo[...]Seria como nas grandes exposições internacionais do início do século XX, quando os pavilhões dos paises apresentavam as últimas novidades e os progressos científicos[...] um evento sem precedentes no Brasil, poderíamos mostrar ao mundo quem éramos e o que deviam esperar de nós."12
A construção do Maracanã, o maior estádio do mundo na época e até meados dos anos noventa, veio silenciar os críticos de que o país não seria capaz de sediar um evento de tal magnitude. Artigos de jornal e intensos debates na sociedade também questionavam a construção do estádio em detrimento de hospitais e obras mais importantes, que, no entanto, foi concluído com justificativas múltiplas, de pesquisas de opinião de com amplo apoio popular até argumentos de que o esporte é "escola de democracia e fonte de saúde para as massas" e de que o estádio seria "uma dádiva das gerações presentes ao bem das gerações futuras, para fazer ainda mais forte, mais altiva a riqueza humana do Brasil."13, de mostrar o dinamismo e a grandeza de seu povo, a sua receptividade, amistosidade perante às demais nações; sua força e o seu preparo como um país voltado para o desenvolvimento e para o futuro, que simbolicamente viriam através da conquista do campeonato mundial.
Observa-se na realização da Copa do Mundo de 1950 não só a associação do futebol com a questão da inclusão social na sociedade, mas também com o desenvolvimento do país perpetrado em nome do interesse real povo. A mobilização da população durante o evento foi intensa e a derrota para os uruguaios na final foi sentida como uma derrota de toda a nação, como em uma guerra. O resultado não representou o fim da relação entre o povo brasileiro e o futebol, e o "tempo se encarregou de mostrar que nesse dia, o Brasil nasceu para o mundo como expressão do futebol mundial"14.
O futebol brasileiro teve que passar ainda por mais uma Copa em branco para que em 1958 se consagrasse pela primeira vez como campeão mundial. Apesar de não ter sido apropriada diretamente, a conquista na Suécia reforçou o imaginário popular de que o presidente Kubitschek e seu Plano de Metas eram vitoriosos, em consonância com o discurso desenvolvimentista e do progresso do país em todos os ramos. Neste momento, o futebol serviu também como um forte instrumento de política externa. Seria a primeira e única a vez que um país não-europeu venceria uma Copa no velho continente e o talento de jogadores como Pelé e Garrincha se tornaria global.
Na conquista de 1962, no conturbado contexto político do governo João Goulart, e posteriormente com os militares no poder, esta associação entre poder e futebol passou a ser mais difusa. O fato é que com a ligação entre nação e futebol já consolida, o esporte passou a trazer mais lucros econômicos e políticos a nível regional. Tanto no primeiro período democrático quanto na ditadura, o esporte começou a ser visto como uma atividade benéfica para dirigentes, empresários, patrocinadores e também para promover pequenas oligarquias locais. Neste momento é interessante notar também que com o advento da ditadura, apesar do assédio de times europeus, Pelé foi considerado um patrimônio nacional, um "produto humano" valioso que não poderia deixar o país.
Na Copa de 70, auge do milagre econômico e da repressão, o governo Médici tentou se apropriar do futebol na tentativa de colar o esporte ao regime militar e aumentar o prestígio do país a nível internacional. Médici talvez tenha sido o último a tentar fazer esta ligação direta, em que apoiar a seleção brasileira significava apoiar seu governo, no momento em que o Brasil se consagrava como o maior vencedor em Copas do Mundo. Hinos como o "Para Frente Brasil"15 e lemas como "Ninguém segura este país" e "Brasil: ame-o ou deixe-o" são significativos deste tipo de nacionalismo, cujos críticos do regime militar tinham bastante dificuldade em lidar.
A ditadura se encarregou também de aparelhar a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e criar estruturas administrativas para controlar o esporte no país. O Campeonato Brasileiro começou a ser organizado em 1971, chegando a ter em 1979, 94 clubes participantes. "Onde a Arena vai mal, mais um clube no nacional. E onde a Arena vai bem, mais um clube também"16 se tornou um lema marcante desta política dos governos militares, que se utilizaram do esporte para garantir o poder da Arena, partido de sustentação do regime. Remonta a esta época também a construção de grandes estádios pelo interior, em particular no Centro-Oeste e no Nordeste.
Por fim, ao longo da década de 70 se consolida também a imagem do Brasil como uma referência no terceiro-mundo de modelo de desenvolvimento nacional, participação ativa nos fóruns internacionais e solidariedade com os paises subdesenvolvidos. O futebol ajudou a afirmar esta identidade, principalmente na África e no Oriente Médio, com os clubes que excursionavam pelo mundo em busca do dinheiro dos petrodólares e através da contratação nomes brasileiros de renome para treinar suas equipes nacionais. O próprio Carlos Alberto Parreira, ex-técnico da seleção brasileira, treinou as equipes de Gana, Arábia Saudita, Emirados Árabes e Kuwait entre os anos 60 e 80. O exemplo do futebol brasileiro como um agente na construção da identidade nacional parecia agradar as lideranças destes paises, a grande maioria ditaduras e de independência recente.
Nos anos 80 e 90, apropriações políticas e culturais do futebol diminuíram consideravelmente, enquanto cresceu o poder econômico privado sobre o esporte. Como ressalta Fiengo, "o espetáculo futebolístico é cada vez menos um ritual político ou uma performance comunitária, e se converte, ao contrário, em um produto da industria cultural a cujo ávido consumo somos incitados sem nenhuma trégua por parte dos meios de comunicação17." Não só no país, mas no mundo inteiro, o futebol se transforma em business, com altos salários, jogadores estrelando propagandas, patrocínios invadindo as camisas dos clubes, merchandising de todo tipo e transmissões milionárias pela televisão. Neste sentido, cabe a pergunta: pode o futebol ainda servir como um instrumento de política externa para o Brasil como no passado?
Na indústria global do futebol o Brasil tem servido hoje como um grande exportador da "matéria prima" básica do espetáculo, os jogadores, "em um dos poucos segmentos do mercado de trabalho em que realmente existe a livre mobilidade internacional da força de trabalho"18. Estimasse que existam quase 4000 jogadores brasileiros atuando no exterior19, que pelo seu "talento artístico" ou como "mão de obra de obra qualificada" não apenas geram receitas externas para as contas nacionais, mas também constroem relações identitárias com os torcedores dos clubes em que atuam no exterior.
De forma intencional ou não, os jogadores brasileiros que atuam no exterior e o sucesso da seleção nacional criam e divulgam uma forte imagem do que é o Brasil. Esta identificação chega a ponto de muitos jovens no mundo inteiro gostarem mais da seleção brasileira do que de suas próprias seleções nacionais, e passem com isso a admirar o país, se interessar por sua cultura e idioma. Apesar dos efeitos difusos e complexos destas interações internacionais a metáfora de que o futebol brasileiro é a nossa Hollywood não nos parece exagerada. Esta espécie de soft-power, vende camisas e produtos com a marca "Brazil", mas pode ter também reflexos políticos para a imagem externa do país.
Lamentando os fracassos da seleção espanhola e tendo como exemplo o caso Brasil alguns trechos da crônica "La selección de fútbol como superproducto" demonstram como tal interpretação não se limita apenas a um ponto de vista interno:
"Pode ser [...] que a lei de paridade ou do matrimônio homossexual tenham procurado prestígio no exterior, mas como comparar com ter ganhado a Copa do Mundo? Brasil não é uma potência efetiva nisto ou naquilo, mas sendo no futebol, a marca Brasil se multiplica em músicas, questões políticos e nas rodas de conversa. A marca Espanha, pelo contrário, apenas levanta cabeça no exterior. [...] Será necessário explicar às diferentes autoridades espanholas e aos responsáveis pela gestão nacional que la emoção coletiva e o seu bom papel move máquinas, felicidade, adesão, coletividade, solidariedade, ganas de trabalhar, de se divertir, de gastar, de investir e de ser mais? [...] A seleção é um produto de mercado maior, um grande produto. Não estar ao seu alcance e não querê-la o saber fabricá-la questiona a competência profissional e política de qualquer líder." (VERDÚ, 2006. tradução nossa)
Concordamos com a afirmação de Verdú de que na atualidade as seleções nacionais, e a seleção brasileira como a máxima representação disso, são grandes produtos de mercado. Percebe-se cada vez mais uma apropriação das forças privadas interessadas principalmente no lucro no futebol em contraponto a antiga visão tradicional político-identitária. Os clubes de futebol locais ao redor do mundo já estampam em suas camisas nomes de marcas multi(nacionais) há alguns anos (uma exceção interessante de resistência vêm do Barcelona e do Athletic Bilbao, históricos veículos dos nacionalismos catalão e basco, respectivamente) mas a FIFA não permite que as seleções nacionais o façam.
Neste âmbito, a disputa comercial pela representação na camisa das nações está mais no fornecimento de material esportivo. A Confederação Brasileira de Futebol (CBF) renovou este ano o contrato com a multinacional americana Nike até a Copa de 2014 pelo valor de doze milhões de dólares anuais20. O antigo contrato com a empresa foi discutido inclusive no âmbito da CPI do Futebol no Congresso Nacional dadas as denúncias de corrupção envolvidas e de ingerências como obrigação de participar em amistosos e de convocar jogadores decididos pela empresa, mas não chegou a uma conclusão final. Atualmente a multinacional brasileira AmBev (American Beverages) patrocina a CBF tendo como cargo chefe a divulgação de seu produto "Guaraná Antártica". Dos anos 80 para cá Pepsi-Cola, Coca-Cola e o Instituto Brasileiro do Café (IBC) também já firmaram acordos com a CBF, fora as cifras milionárias pagas aos jogadores da seleção para estrelarem propagandas dos mais variados produtos.
Por fim, pudemos perceber neste quadro geral como a globalização capitalista tem permitido que empresas nacionais e transnacionais se apropriem do nacionalismo a fim de garantir seus interesses particulares. O Estado, como em muitas outras esferas da vida social, passa a ter pouco controle sobre o futebol e as importantes representações externas que ele transmite, constituindo assim uma transformação importante em relação ao passado. Veremos agora na próxima parte do trabalho um exemplo que de certa forma quebra com esta lógica puramente mercadológica e se de fato a política externa brasileira pode se valer ainda do futebol como um instrumento de política externa.
A Política Externa do Governo Lula e o "Jogo da Paz" no HaitiApesar da continuidade histórica que existe na política externa brasileira podemos afirmar que em comparação aos governos anteriores, a política externa do governo Lula buscou fortalecer um perfil mais independente21, de multilateralismo forte, alianças estratégicas com demais potências médias e economias emergentes como India, China e África do Sul. Nos primeiros anos, uma das principais bandeiras foi a liderança do Brasil na América Latina, através de ativismo diplomático e alianças estratégicas, assim como o Mercosul, de importância estratégica e base para a união política da América do Sul, livre de influências externas, como a européia e a norte-americana, por exemplo.
No que diz respeito às organizações internacionais e organismos multilaterais, o governo Lula buscou a democratização das relações dentro desses espaços22, costurando alianças na OMC e uma representação maior dentro da Organização das Nações Unidas, propondo, por exemplo, a revitalização da Assembléia Geral e do ECOSOC (Conselho Econômico e Social das Nações Unidas) e principalmente uma reforma na composição do Conselho de Segurança, pleiteando com isso adquirir uma cadeira permanente, assim como pretendem Índia, Alemanha e África do Sul.
Para fins deste trabalho pretendemos discutir o uso do futebol brasileiro para legitimar a missão de paz no Haiti (MINUSTAH) em consonância com o objetivo último do governo de conquistar um assento permanente no Conselho de Segurança (CS) da ONU. A indicação por esta organização de uma chefia brasileira pode ser interpretada como uma demorada e cuidadosa estratégia política da diplomacia do Brasil, buscando colocar o país como uma potência regional capaz de arcar com os custos e responsabilidades da governança global. Para um melhor entendimento, deve-se contextualizar a situação haitiana.
No início de 2004 o Haiti vivia um caos político. Conflitos armados surgiam em Gonaïves, norte do país e logo se espalharam por outras cidades. Aos poucos, os insurgentes conquistavam a parte norte do Haiti e marchava para a capital, Porto Príncipe. Com isso, Jean-Bertrand Aristide, presidente do país à época, pede asilo político na África do Sul, partindo no final de fevereiro. De acordo com a Constituição, Bonifácio Alexandre, presidente da Suprema Corte, assumiu o cargo de Chefe-de-Estado interinamente e solicitou ajuda das Nações Unidas para a manutenção da segurança nacional e apoiar uma transição política pacífica. Assim sendo, o Conselho de Segurança da ONU aprovou o envio de uma Força Multinacional Interna que logo começou a operar em território haitiano. Para o comando da MINUSTAH, fora escolhido um militar brasileiro, Gral. Heleno. Desde junho de 2004 o Brasil mantém cerca de 1200 (mil e duzentos) militares naquele país.
Quando o presidente interino Boniface Alexandre do Haiti soube da presença militar brasileira no país o próprio teria afirmado que seria interessante a participação da Seleção Brasileira no processo de paz e o soldados brasileiros junto às armas e equipamentos levaram consigo mil bolas de futebol e camisas verde-amarelas que foram distribuídas em escolas haitianas23. O Chanceler Celso Amorim e o Presidente Lula apresentaram a idéia do "Jogo da Paz", uma partida amistosa entre a Seleção principal do Brasil contra a do Haiti, a CBF e seu Presidente Ricardo Teixeira e os próprios jogadores muitos deles de herança humilde se prontificaram a participar.
Haja vista a grande reputação dos jogadores brasileiros e do selecionado nacional no mundo inteiro - vários deles são embaixadores das Nações Unidas, como Ronaldo e Kaká - se pressupôs que eles teriam uma boa aceitação no país. Assim sendo, a presença de jogadores como Ronaldo Nazário, Adriano, Kaká e Ronaldinho Gaúcho, por exemplo, demonstraria humildade, respeito e comprometimento para com o povo e a causa haitianos. Algo muito mais brando do que a presença através de uma intervenção militar forçada, por exemplo. Como resultado disso a presença brasileira no Haiti seria mais bem vista e aceita por parte da população local o que de certa forma facilitaria o trabalho das Forças de Paz presentes, tornando-o mais ágil e eficaz e contribuindo para o alcance das metas, que são: contribuir para a segurança do país e estabelecer condições para uma transição política pacífica.
Dentro do contexto deste trabalho, que diz respeito à Política Externa do governo Lula e a missão de paz no Haiti (MINUSTAH), é possível afirmar que o futebol e mais especificamente a partida entre as seleções do Brasil e Haiti em Porto Príncipe, em agosto de 2004, foi instrumento de aproximação entre os dois países, ou seja, foi um recurso da política externa do atual governo. Haja vista a grande reputação dos jogadores brasileiros e do selecionado nacional no mundo inteiro - vários deles são embaixadores das Nações Unidas, como Ronaldo e Kaká - pressupõe-se que eles terão uma boa aceitação nos lugares que freqüentam. Assim sendo, a presença de jogadores como Ronaldo Nazário, Adriano, Kaká e Ronaldinho Gaúcho, por exemplo, demonstraria humildade, respeito e comprometimento para com o povo e a causa haitianos. Algo muito mais brando do que a presença através de uma intervenção militar forçada, por exemplo. Como resultado disso a presença brasileira no Haiti seria mais bem vista e aceita por parte da população local o que de certa forma facilitaria o trabalho das Forças de Paz presentes, tornando-o mais ágil e eficaz e contribuindo para o alcance das metas, que são: contribuir para a segurança do país e estabelecer condições para uma transição política pacífica.
Para a realização da partida um estádio foi reformado às pressas pelo governo haitiano juntamente com as tropas das forças de paz.. A seleção haitiana foi montada às pressas, já que há alguns anos não disputava uma partida oficial24. A seleção brasileira chegou em Porto Príncipe procedente de Santo Domingo, capital da República Dominicana, país que "divide" a ilha de Hispaniola com o Haiti. Assim que chegaram, os jogadores foram acomodados em veículos militares, os "Urutus", das Forças de Paz, e conduzidos até o estádio, Sylvio Cator. As vias de acesso ao estádio estavam repletas de milhares de pessoas que acenavam para os futebolistas brasileiros, que correspondiam com acenos e aparições na parte externa dos veículos. O estádio encontrava-se lotado e milhares de pessoas não conseguiram entrar. Antes mesmo de o jogo começar, o presidente Lula se encontra com os jogadores da seleção brasileira e ressalta: "Porque é um jogo da solidariedade, pela paz, um jogo em que o desejo é o de aproveitar esse momento para mostrar ao mundo que é possível construir a paz sem precisar que haja guerra"25.
Um dos momentos mais emocionantes da partida foi a execução do hino nacional haitiano. As quinze mil pessoas presentes cantaram alto e uníssono, algo surpreendente, o que revelou o orgulho daquele povo. O jogo terminou com o placar de 6 a 0 para os brasileiros, que logo após a partida tomaram rumo ao aeroporto internacional de Porto Príncipe, ou seja, os jogadores do Brasil ficaram menos de cinco horas em solo haitiano26. De fato a imagem transmitida pelo jogo foi de paz e que os jogadores transmitiram humildade e comprometimento para com o povo haitiano. A aproximação entre os dois países também aconteceu. Atualmente, a fornecedora de material esportivo da Federação Haitiana de Futebol é brasileira. Além disso, existem programas de cooperação entre Brasil e Haiti para a promoção do esporte e da educação, iniciativas que o jogo contribuiu para o surgimento, assim como a reforma de praças esportivas pelo Exército Brasileiro e fornecimento de indumentária esportiva e material didático27.
Diante destas questões o mais importante é destacar que apesar da aproximação bilateral o jogo não teria sido realizado se o governo brasileiro não estivesse presente no país como a liderança da MINUSTAH e os interesses que o Brasil têm nesta participação como destacamos acima.A realização da partida certamente foi proveitosa para os haitianos mas até que ponto isso constitui um compromisso de médio/longo prazo do Brasil para a reconstrução efetiva das instituições e da infraestrutura do país é bastante questionável.
Como toda ação de política externa é necessário compreender também o seu sentido no âmbito interno. Primeiro foi necessário um acordo entre o governo e a CBF para que a seleção brasileira participasse da partida, o que não tem precedente na história recente do país. Segundo, tal iniciativa legitima internamente a idéia de que Lula é uma liderança nacional e também mundial que busca imprimir a política externa brasileira um conteúdo mais popular e criativo valorizando a cooperação para além de aspectos militares ou econômicos.
Por fim, exemplificasse assim não apenas um uso político, contracorrente no Brasil em tempos mais recentes, mas também uma ação clássica de uso do futebol adaptada a uma nova roupagem para legitimar uma missão de paz. Em termos gerais se tratou de uma estratégia bem sucedida por parte da política externa brasileira já que não houve maiores imprevistos durante a partida, grandes interpretações negativas por parte da opinião pública mundial e a mensagem de paz foram refutadas.
ConclusãoEsperamos que este trabalho fomente a importância de se discutir não apenas o esporte mas também outros processos da atualidade que constituem as relações internacionais e que muitas vezes passam desapercebidos pelos estudiosos da área quando focados apenas em questões racionalistas e estatais. Estamos cientes da dificuldade de se trabalhar com um tema repleto de nuances, que lida com subjetividades coletivas e cuja intenção dos atores envolvidos nem sempre é explícita, no entanto, uma explicação determinista dos fatos é também limitada para interpretar fenômenos cada vez mais difusos e com muitos interesses em jogo.
Tentamos mostrar na história como que o uso do futebol por parte da política externa brasileira mudou ao longo do tempo e hoje enfrenta desafios. Não acreditamos que as forças mercadológicas e a atuação das empresas privadas (multi)nacionais sejam em si ruins para o futebol e para o Brasil, e da mesma forma que qualquer uso político-identitário é em si positivo, ou seja, a lógica do lucro nem a lógica da acumulação de poder podem apagar a essência do futebol, sendo necessário, portanto, um questionamento cotidiano sobre as formas de apropriação deste esporte que em si constituinte da cultura brasileira a afim de que ele promova valores de paz e integração social.
Por mais que seja deixado de lado pelos analistas e colocado em segundo plano por muitos, o esporte é instrumento da política externa de muitos países, devido ao apelo emocional e a capacidade de mobilização de centenas de milhares e até milhões de pessoas. É louvável que o Brasil tenha tomado uma iniciativa como esta. Pode fazer até mais, exemplos não faltam, como a aproximação com os países africanos de língua portuguesa, com o Timor Leste, também. A Alemanha utilizou o futebol também para se aproximar de Israel e os resultados foram positivos. É sabido que o esporte promove e difunde valores que contribuem para a paz, para o solidarismo, desenvolvimento e bem estar social. Se não fosse assim, a FIFA (Federação Internacional de Futebol) e o COI (Comitê Olímpico Internacional) não teriam mais que duzentos membros, maiores mesmos que a Organização das Nações Unidas. É impossível negar a força do esporte no mundo, na política, na economia, nas relações sociais, enfim, não reconhecer isso seria ignorância.
Muitos devem perguntar: e os resultados que o Brasil colhe com tudo isso? Se forem bons ou não, acima de tudo são, e os motivos estão explicitados acima. Sem dúvida alguma bem melhor e mais saudável uma aproximação através de uma bola ou de uma rede do que através de um fuzil ou de uma bomba. Por fim, existe uma grande ambivalência que impede uma interpretação única de nosso estudo de caso do Haiti. Se o "Jogo da Paz" representa um esforço que vai contra a lógica do lucro dominante, promove a integração dos povos e permite a uma população sofrida ter um dia de glória e reconhecimento, ao mesmo tempo pode também ser entendido como um exercício de legitimação política com um claro objetivo deslocado das necessidades haitianas: a busca pelo assento no Conselho de Segurança. Neste sentido, a conclusão final a que chegamos é que se o Brasil almeja a uma liderança na América Latina ou no Mundo ele deve estar ciente das responsabilidades envolvidas com os atores com quem interage e dos desafios de se driblar e vencer adversidades sociais muito mais difíceis do que as colocadas e tentadas de serem superadas dentro de um campo de futebol.
Notas
FIENGO, 2002, p.258;
STORTI & FONTENELLE, 1997, p.16;
MOURA, 1998, p.17;
SOARES, 2002, p.158;
RIBEIRO, 2003;
SOARES, 2002, p.160;
Ibid
Ibid
ANTUNES, 2004, p.78;
SOARES, 2002, p.154;
Ibid;
Ibid;
MOURA, 1998, p.31;
MOURA, 1998, p.33;
SOARES, 2002, p.159;
GONÇALVES, 1985, p. 67;
FIENGO, 2002, p.263;
Ibid (p.261);
FIENGO, 2002, p. 259;
http://www1.folha.uol.com.br/folha/esporte/ult92u100370.shtml
http://www.achegas.net/numero/dezessete/paulo_r_a_17.htm
http://www.espacoacademico.com.br/019/19pra.htm
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A última partida oficial da seleção do Haiti até o jogo contra o Brasil foi válida pelas eliminatórias da Copa de 2002 (www.fifa.com/en/organisation/confederations/associationdetails/0,1483,HAI,00.html?countrycode=HAI)
www.portalpolitico.com.br/jornalismo/180804br.htm
Filme: "O Dia em que o Brasil Esteve Aqui";
www.exercito.gov.br
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digital · Año 11 · N° 104 | Buenos Aires,
Enero 2007 |