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Educação Física e sociedade de consumo

   
*Acadêmicos do curso de Engenharia
de Produção e Sistemas - UDESC.
**Professor do Departamento de
Ciências Básicas e Sociais-UDESC.
(Brasil)
 
 
Ana Cristina Rodrigues Dutra*  
João Francisco Severo Santos**  
Michael Gelsleichter*  
Nilton da Silva Jr*
joao_severo@ig.com.br
 

 

 

 

 
Resumo
     O artigo em questão busca refletir acerca da influência da sociedade de consumo na educação, principalmente na educação física, e para isso, resgata a Educação Física através dos tempos, sua criação e sua posterior constituição e inclusão como disciplina, sua formação burguesa de caráter discriminador que apesar de nos tempos mais remotos ser apenas um ritual aos deuses, com a criação da competição, acabou segregando os elementos da sociedade, pois apenas os mais perfeitos, eram considerados mais capazes. Como de forma menos acentuada, nos dias atuais esses preceitos ainda são disseminados. Assim propõe-se fazer uma análise, de como as representações de "um modelo ideal" de corpo, conduta social e estereótipos estão presentes nessas aulas, como a sociedade tem influenciado no comportamento dos indivíduos, transformando-os em produtos de uma linha de produção onde não pode haver falhas na sua composição, e se alguém foge desses padrões, acaba ou sendo excluído da sociedade, ou colocado em evidência por sua exoticidade. Também alertando sobre como tem-se relacionado atividade física com saúde, sem se preocupar com os males que a primeira pode causar sem a devida manutenção da segunda. Qualidade de vida é pressuposto básico de cidadania, mas os atuais professores de educação física tem tido dificuldades para levar esse conceito para dentro de uma sala da aula. Com a atual massificação da sociedade, fica difícil evitar que a educação física siga o mesmo rumo, se tornando mais um mecanismo da massificação.
    Unitermos: História. Educação. Sociedade.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 104 - Enero de 2007

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Introdução

    O artigo tem fundamental importância, na análise de como a sociedade de consumo tem influenciado o programa da disciplina.

    Trazendo consigo, a história da disciplina, como as poucos o homem pré histórico foi coordenando seus movimentos, como os povos antigos, apesar de não competição, coordenavam os movimentos do corpo para o culto de seus deuses. Posteriormente com o desenvolvimento das práticas esportivas, houve a necessidade da criação de um profissional especializado na coordenação do corpo.

    Traça um paralelo na realidade em que se encontra a disciplina, e sua principal atuação na sociedade, como o professor de Educação Física, ao trabalhar diretamente com o corpo, participa de um processo de transmissão cultural. Devendo por isso estar atentos para não tornar-se vítimas de opressões e modismos.

    Procura alertar sobre como a indústria cultural tem influenciado na prática de educação física, e como a escola pode ser um perigoso mecanismo de transmissão da cultura de massa. Traz também uma discussão sobre o mito que tem se criado em torno da educação física, como supostamente tem se relacionado atividade física à saúde.

    E revela como a educação física tem se tornado um mecanismo de segregação da sociedade. Como com o pressuposto de construção do "eu" do indivíduo tem se fabricado essa "individualidade coletiva", pois todo o estilo de vida do indivíduo é ditado pela sociedade que determina o que ele come, e como deve se vestir... Analisando o processo de modelagem do indivíduo, que sem perceber acaba se adequando a todas as exigências da sociedade, sendo estas camufladas em vários aspectos.


Um pouco de história da Educação Física

    Os povos antigos cultuavam a força e a resistência física, desenvolveram a habilidade guerreira através de um aprendizado contínuo, utilizando como armas arco e flecha, equitação, e lutas de diversos estilos. O espírito guerreiro merece uma referência especial, pois foi auxiliado pela sedentarização do homem. Motivados por elementos espirituais, serviam também para avaliar o grau do treinamento físico dos jovens, marcando profundamente a Educação Física dos povos antigos.

    Os chineses se aperfeiçoaram magnificamente na caça, lutas diversas, natação, esgrima, hipismo. Sendo assim, foi o primeiro povo que se tem noticia, que introduziu, no Oriente, a profissão do professor, que passava para os jovens os ensinamentos obtidos ao longo da vida.

    Na pré-história o homem pré-histórico tinha duas preocupações: atacar e defender-se, que era extremamente necessário para o homem primitivo sobreviver. Por isto, eram considerados os homens com mais músculos do que cérebro. Realizavam exercícios naturais, praticando uma verdadeira Educação Física natural.

    Os habitantes consideravam sua sobrevivência um favor dos Deuses dando sua vida um sentido ritual, não havia muito espaço para a competição. Exercícios corporais, com movimentos coordenados, se resumiam à dança nas grandes festividades, inclusive nos cultos aos mortos.

    Ainda nesta época, existiram expressões de jogos utilitários e recreativos. Tais práticas, sempre tiveram seu próprio cerimonial e regras estabelecidas e, geralmente, tantos vencedores como perdedores aceitavam o resultado desportivamente. Aí surgiu uma forma antiqüíssima do FAIR PLAY, ou espírito esportivo.

    Através dessa história podemos perceber o desenvolvimento das práticas corporais e principalmente esportivas. O surgimento da competição foi um dos motivos para o aparecimento do professor de educação física. Todo atleta buscava a vitória e para isso era necessário um bom orientador que lhe proporcionasse um desempenho excepcional. Este orientador deveria ter a capacidade, sabedoria e técnicas adequadas para o maior desempenho do atleta. Alguns orientadores foram adequando-se e assumindo esse perfil e dai surge a forma primitiva do professor de educação física. Ele procura incentivar e desenvolver as atividades da formação dos educandos, de maneira que possam contribuir com a coordenação motora, intelectual, afetiva e cultural. Pode-se salientar que neste período a estética e o desempenho físico estavam em primeiro lugar.

    A partir dos anos 60, com os movimentos da contra cultura, foi se adotando um estilo de vida fora do sistema ou da sociedade de consumo, que tinha como princípios a preservação do meio ambiente, a espiritualidade e a volta para a cultura dos povos antigos, já que o Ocidente estava tomado por idéias da Educação Física que se preocupava apenas com o corpo ou sua aparência.

    Atualmente, no Brasil e no mundo, as práticas corporais aumentaram, aumentando o número de profissionais relacionados a esta área. As atividades corporais estão englobadas em "suaves" e "alternativas". A diferença entre os profissionais que trabalham nestas áreas está em sua forma de dar e mostrar o conteúdo e seus objetivos finais. Na área do "suave", os professores trabalham com a lentidão, não exigindo muito do praticante, pois o objetivo é o relaxamento e não visa nem competições, nem medalhas olímpicas.

    O "alternativo" já trabalha com a repetição, com o cansaço do praticante e o objetivo é a estética, a beleza, e o resultado é essencial. É o que se vê hoje em academias e clubes de ginástica.


O conhecimento escolar e a cultura de massa

    Observa-se que a crescente massificação da sociedade, proveniente da Indústria Cultural e veiculada pelos meios de comunicação, atinge profundamente a escola, que não está preparada para superar as contradições dessa sociedade de consumo.

    Além de não associar a teoria e a prática, a educação formal também não tem possibilitado aos alunos pensar e construir conhecimento, e também não está voltada para a formação do caráter do indivíduo. Colocando a linguagem escrita como principal, deixando de lado as linguagens falada, musical e corporal. Valorizando o pensamento conceitual em vez do pensamento criador.

    Acredita-se, que a Educação Física e a Educação artística tem um papel importantíssimo no fortalecimento de uma pedagogia crítica, tendo em vista a possibilidade de resgatar o lazer e a estética educação, onde a relação prazer / criatividade fazem o indivíduo envolver-se na construção de conhecimentos.

    Desse ponto de vista, uma educação que vise o desenvolvimento do ser por inteiro, compreende a aprendizagem como significativa quando há uma intersecção entre SABER e CONHECIMENTO. Esther Grossi (1990) faz uma distinção entre os dois, quando afirma que "o saber é pessoal e está mais ligado à ação e aos movimentos, sendo também transformador. Já o conhecimento é social, sistematizado e tem mais a ver com as palavras."

    "É na experiência estética, onde o sentir e o pensar estão associados, que desenvolvemos nossa capacidade criadora, a qual nos permite perceber e sentir melhor o mundo. A base de toda situação de aprendizagem deveria ser estética" (Duarte Jr. 1991), tal capacidade criadora não ocorre apenas na arte, ainda que nela encontre várias formas de expressão. Reconhece-se que no desenvolvimento da consciência estética, o movimento, a expressão corporal e a dança desempenham importantes papéis. A auto-expressão, a criatividade e o prazer proporcionados por estas atividades corporais são ótimas defesas contra a massificação de idéias e valores dominantes, uma vez que fortalecem o individualismo. Por outro lado, no processo de massificação, é muito provável que as imagens dos divertimentos de massa que atingem as pessoas, tornem a imaginação limitada e os indivíduos acabam apenas reproduzindo o pensamento coletivo.

    Uma questão que se coloca é a de que a massificação pode ser amenizada pelas reais condições de cultura e educação. Sendo o corpo o primeiro contato do indivíduo com o meio, este aprende e expressa a cultura em que vive. As práticas corporais nada mais fazem a não ser traduzir as concepções de mundo em que o indivíduo está estabelecido, que embora pareçam universais, dizem respeito ao que os corpos aprendem da sociedade, em um determinado tempo e espaço.


A influência da indústria cultural na prática de Educação Física

    Observa-se dois caminhos quanto a atuação e o efeito da Indústria Cultural no fenômeno de massificação da sociedade, pois existe a possibilidade de que os conteúdos das mensagens ou produtos divulgados pela Indústria Cultural sejam usados tanto para o esclarecimento como para o bloqueio do senso crítico e conseqüente manipulação dos indivíduos.

    A escola está sempre correndo o risco de, ora adotar e transmitir a cultura massificada, ora aumentar a tensão entre o currículo e o mundo vivido dos alunos, por ignorar o fato de que estes são efetivamente atingidos por ela. A melhor solução para Gadotti (1991), seria partir constantemente dessa cultura de massa e em cima dela construir a cultura elaborada.

    Frisando bem a importância de partir de onde os educandos se encontram, a elaboração do programa deve estar comprometido com as necessidades e interesses destes, como nos ensinou Paulo Freire (1992). Ainda a exemplo deste, o processo educativo poderá ser encarado como uma produção multiculturalista, se pretender ampliar o universo cultural do grupo, através da integração das diferentes linguagens ou vertentes da dança.


O "mito" da atividade física e saúde

    De acordo com o que diz Carvalho (1996): "Determinantes estruturais, como a indústria cultural, a política neoliberal, a indústria da beleza, a tecnologia e a sociedade de consumo, têm influenciado para que a 'necessidade' de atividade física tenha cada vez mais adeptos: as mais variadas formas de seduzir as pessoas para a prática do exercício físico aparecem todos os dias nos meios de comunicação ou com a ajuda dos formadores de opinião".

    A autora diz: "A formação do profissional que atua na área da Educação Física e Lazer precisa ser muito crítica, para que esse profissional possa identificar e atender às reais necessidades de sua clientela e não à lógica do mercado. A Saúde Pública também tem sua parcela de responsabilidade, uma vez que responsabiliza o indivíduo por sua saúde, produzindo conhecimentos e informações que orientam os indivíduos, muitas vezes apenas sendo mais um meio de divulgação da indústria cultural." (Carvalho, 1996).


Identidades e estereótipos nas aulas de Educação Física

    Uma rápida passagem pelos espaços públicos como praias, praças, shoppings dentre outros, seja talvez, suficiente para perceber o quanto o corpo está em evidência. Em princípio, são pessoas comuns que praticam exercícios físicos, aderem a uma alimentação baseada no light e diet, na busca de saúde, melhor performance, como também, preocupadas em melhorar seu "visual". Entretanto, esse visual em uma sociedade de consumo onde tudo é rapidamente descartado e anunciado como "novo", deve estar em sintonia com os traços e formas corporais, exibido pela atriz ou pelo ator de determinado programa, com as personagens que posam nessa ou naquela revista. Com essa ótica, os cuidados e transformações corporais são assumidos como sinônimos de status, identidade e diferenciação social.

    As pessoas na sociedade atual de consumo, têm uma preocupação exacerbada com a aparência, onde "a representação do eu, look, apontam para um processo de diferenciação cultural que sob diversos aspectos é o anverso das imagens estereotipadas das sociedades de massa..." (Feartherstone,1995, p. 137).

    É interessante destacar que tal empreitada é veiculada como de total responsabilidade do indivíduo, que de certa forma deve procurar "especialista para o seu problema". Seja o nutricionista, o personal trainer, o cirurgião plástico, o esteticista dentre outros, os quais prometem uma nova cara, cabelo, coração etc. Nessa perspectiva, nega-se o histórico vivenciado pelo indivíduo, sua individualidade biológica e cultural, sua forma de ser e estar no mundo, que não é aquela vendida e consumida globalmente. Vive-se buscando o ainda não alcançado (ou consumido!), conforme o último modelo do lóbulo da orelha, formato labial, das receitas milagrosas às roupas de ginástica.

    Talvez, já não baste a posse de bens materiais como expressão de poder e riqueza. O corpo também tem sido assumido como elemento de identidade e pertencimento a uma sociedade de consumo que impõe aos negros, por exemplo, como deve ser penteado e tratado o cabelo, qual a melhor e mais recomendável loção para o tipo de pele "específico", qual a roupa que melhor veste em função dessa ou daquela característica. O mercado de bens e de serviços autodenomina-se globalizado e democrático, desde que os produtos e as pessoas sejam consumidos para realçarem suas diferenças, como também em outros momentos, camuflá-las.

    Tal dilema revela-se bastante acentuado, quando "fabrica-se" a idéia do corpo como elemento diferenciador, componente imprescindível para a constituição do "eu", como se ele não fosse individualmente constituído e constituinte de si em interação com os outros. Entretanto o que assistimos nas práticas sociais cotidianas é o repudio pelo corpo do outro, uma vez que, toma-se como referência, um modelo idealizado de corpo veiculado como sinônimo de saúde, beleza e juventude. Assim, as pessoas que não correspondem a esses modelos, com suas singularidades e similaridades, são desprezadas, vistas como anomalias que "devem" ser tratadas. Desse modo, "a dessemelhança do Outro, pelo contrário, ou gera hostilidade e, na melhor das hipóteses, a tolerância, ou gera a curiosidade por aquilo que é tomado exótico" (Silva, 2001, p. 94).

    Essa diferenciação torna-se ainda mais acentuada quando disseminada e objetivada pelas ciências sociais em sua vertente positivista, a qual, louca por reconhecimento enquanto campo de saber, passa a analisar e classificar os indivíduos fundamentando suas bases num certo plano, cujo pressuposto é descrever minuciosamente os indivíduos, dissecando aquilo que o olho vê, buscando características observáveis fundadas em premissas universais. As ciências sociais nesse contexto constituem-se com uma visão objetivada, onde aquilo que se vê, é o que se é. É importante salientar que representam visões de mundo estereotipadas, tomando como referência a constituição biológica dos indivíduos.

    "Nesse contexto, a escola é assumida pelo Estado como elemento unificador e homogeneizador de uma suposta identidade nacional. Esta tarefa era, em princípio, respaldada em uma religião e língua comum, cabendo à escola o papel de disseminar valores, costumes, tradições e habilidades que inserissem os antigos súditos, miraculosamente transformados em cidadãos, na órbita de uma nova forma de pensar e organizar-se socialmente" (Saviani, 1995).

    "Historicamente, a inclusão da disciplina de Educação Física no contexto escolar, inicialmente denominada de ginástica, está ligada à idéia utilitarista de formação de hábitos higiênicos, preservação e reabilitação da saúde, seguindo o modelo de indivíduo civilizado, forjado entre o final do século XIX e início do século XX" (Soares, 1994). Essas idéias influenciaram o pensamento dos educadores brasileiros, dos quais se vê resquícios até os dias atuais.

    Assim, a Educação Física centrou suas preocupações iniciais objetivando formar indivíduos, a partir da crença em um "tipo ideal" que correspondesse a certo padrão de saúde preconizado pela ciência, e pela medicina em especial. Posteriormente, buscava-se que através da prática sistemática e disciplinada de exercícios físicos, estes indivíduos pudessem desempenhar um conjunto de habilidades em consonância com os interesses do emergente modelo de desenvolvimento industrial.

    Esses modelos doutrinadores e alienantes cumprem seu papel disciplinador, adestrador, sinalizado por Foucault (1987), onde "o corpo é concebido enquanto unidade social que deve ser sujeitada, controlada e vigiada pelas diversas instâncias sociais, entre elas a escola".

    Nesse sentido, Silva (2001) salienta que a compreensão de corpo assumida no âmbito da área biomédica a partir do século XIX, vai respaldar as intervenções no corpo, quer seja individual ou social, o que será transplantado para a Educação Física em seu viés mecanicista e homogeneizador, o qual não considera as diferenças étnicas e culturais.

    A não consideração dessas diferenças por parte da Educação e, em especial, pela Educação Física, torna-se ainda mais preocupante ao analisarmos as novas configurações sócio-econômicas desencadeadas pela globalização, pela reconversão da força de trabalho, não mas alicerçada no modelo fordista, pelas políticas de localização, pelos estudos culturais que enfocam as identidades múltiplas e as culturas híbridas, que exigem da escola uma postura pedagógica mais plural e contextualizada, voltada à diversidade cultural e que contemplem ao mesmo tempo, o global e o particular.

    Conforme já exposto, algumas teorias educacionais se valeram de um tipo idealizado de indivíduo que muito mais do que contribuir para sua promoção coloca-o em uma redoma (a escola), na qual o mesmo deve ser lapidado, moldado e preparado para o convívio social. Essa compreensão de educação era, em parte, responsável pela exclusão, "estranhamento" e "insucesso" desses indivíduos no processo educacional, ao tomá-los como "desajustados" e incapazes.

    Para Louro (2000), esse processo de modelagem social, é "um trabalho incessante, onde se reconhecem - ou se produzem - divisões e distinções. Um processo que, ao supor 'marcas', corporais, as faz existir, inscrevendo e instaurando diferenças" (Louro, 2000, p. 61).

    Essas marcas corporais que "identificam" ou "rotulam" os indivíduos, dizendo o que cada um deve fazer nas aulas de Educação Física, acentuam-se ainda mais, pela organização de atividades que separam os meninos das meninas. Essa forma de organização é justificada alegando-se diferenças eminentemente biológicas, pelos discursos que enaltecem a dor e o sofrimento como sinônimo de virilidade e masculinidade; nestas, o corpo é considerado um objeto a ser vencido, onde a sensibilidade é tomada como atributo feminino. Nessa visão dicotômica, estereotipada e preconceituosa, a construção das identidades é forjada na comparação com o outro, tomando como referência, o modelo de identidade hegemônico e não a interação entre diferentes.

    Como lembra Bracht (1999), a Educação Física escolar brasileira tem se legitimado socialmente pelo seu atrelamento aos interesses higienistas, médicos e esportivistas de caráter utilitarista e homogeneizador, que reconhece as diferenças biológicas no contexto escolar, fazendo a opção por privilegiar os "corpos normais", os indivíduos com chance de tornar-se talento esportivo. Desse modo, as identidades são perseguidas dentro de modelos idealizados, estanques e rígidos, onde os indivíduos cumprem passivamente as normas estabelecidas e aceitas socialmente.

    Sayão (2002), analisando os conteúdos que fundamentam a Educação Física na Educação Infantil critica a psicomotricidade como sendo referencial teórico, em condições de atender as necessidades das crianças, uma vez que está "pautada num modelo de criança universal... desconhece as diferenças de gênero, etnia e classe social, entre outros" (Sayão 2002, p. 55). Entretanto a mesma autora chama a atenção da importância do domínio desse pressuposto teórico por parte dos professores(a), "desde que isso não sirva para limitar a criança em suas linguagens de movimento nem para antecipar diagnósticos preconceituosos, que, muitas vezes, são elaborados tendo em vista um padrão de criança, no qual aquelas que não se enquadram são avaliadas como "deficientes" ou "com dificuldades" (Sayão, op. cit., 56).

    Assim, desde cedo na escola, as crianças vão sendo "marcadas" e identificadas através de características tidas como "essencialmente" desse ou daquele gênero, classe social, etnia, religião, ente outros.

    Nesse sentido, Hall (2000) critica esse tipo de identidade essencialista forjada pelo Iluminismo que considera o "núcleo estável do eu que passa, do início ao fim, sem qualquer mudança, por parte das vicissitudes da história... um eu permanente, sempre e já, o mesmo idêntico a si mesmo ao longo do tempo" (Hall, 2000, p. 108). Este autor tão pouco concorda com o conceito de identidade de cunho eminentemente sociológico, como "àquele eu coletivo ou verdadeiro que se esconde dentro de outros eus - mais superficiais ou artificiais impostos - que um povo, com sua ancestralidade partilhadas, mantém em comum... um eu coletivo capaz de estabilizar, fixar ou garantir o pertencimento cultural ou uma 'unidade imutável' ( Hall, op. cit., p.108).

    Para Hall, o conceito de identidade encontra-se na inversão e na emersão das mudanças provocadas pela globalização e pelas migrações forçadas ou livres. Desse modo, o conceito de identidade estaria na interface entre concepções insatisfatórias e as novas que se encontram no devir, em processo de formação. Esse autor enfatiza ainda o conceito de identidade na perspectiva discursiva, como algo em processo, nunca completamente determinado. Embora tenha suas condições determinadas pela materialidade e pelos símbolos, ela é condicional, está alojada nas incertezas, nas possibilidades relacionais construídas socialmente com o Outro. "Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por meio da relação com o Outro, com aquilo que não é, com precisamente aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior constitutivo, que o "significado" positivo de qualquer termo - e, assim, sua "identidade" - pode ser construído" (Hall, op. cit., p.110).

    Assim, percebe-se que as identidades, como também os fenômenos com os quais a Educação Física trata e que se expressam através do movimento como expressão cultural, não são naturais. São produzidos historicamente, influenciados pelo contexto no qual estão inseridos. Desse modo, se até então a Educação Física tentou unificar e homogeneizar as diferenças, certamente silenciou e negou a essas mesmas diferenças, as condições de possibilidades de relações intra e interpessoal, processo que pode e deve desencadear novos sonhos, encontros, diálogos.

    A escola está constituída e preparada para lidar com um tipo de indivíduo que, em princípio, talvez não precisasse dela. Um tipo de indivíduo idealizado pelas metodologias pedagógicas que é oriundo de família branca bem estruturada, desejoso de aprender o que o professor ensina, portador de uma linguagem e um comportamento compatíveis com as metodologias e com os programas escolares, ou que apresentam "o núcleo estável do eu", desenvolvido e socializado primeiramente pela família e, em seguida, pela escola (Tedesco, 1999).

    Nesse contexto, as diferenças são encaradas como "anormalidade" e desinteresse. Gusmão (1997) pontua que "a nossa sociedade e a escola... não desenvolvem... mecanismos democráticos, perante as diversidades social e cultural" (Gusmão, Op. Cit., p.12-3).

    Talvez, como possibilidade de superação dessa compreensão reducionista e estanque de identidade e estereótipos, entendemos que a Educação Física possa trilhar por caminhos diferentes dos que até então percorreu na escola. O primeiro deles poderia ser considerar as leituras de Assmann (1995), colocando a corporeidade como ponto central dos processos educacionais constituída enquanto "instância básica de critérios para qualquer discurso pertinente sobre os sujeitos e a consciência histórica... A corporeidade não é fonte complementar de critérios educacionais, mas seu foco irradiante e principal"(Assmann, 1995, p.106).

    Portanto, estamos nos reportando aos seres humanos concretos, com desejos, necessidade, prazeres e aspirações, sofridas, produzidas e cravadas no e pelo corpo, onde certamente, as "marcas" deixadas pela escola são profundas e intensas.

    Silva (2001), enfatiza a importância da corporeidade como instância privilegiada na interconexão entre a cultura e a natureza. Uma aposta a ser feita e encampada na possibilidade de uma outra cultura, menos racionalizadora e racionalizante, insensível para com o outro e para consigo mesmo, onde o corpo não seja apenas uma "máquina biológica" a ser lapidada para esse ou aquele fim.

    É uma compreensão de corporeidade na qual a Educação Física poderia se pautar, para fazer acontecer no contexto escolar, metodologias pedagógicas que possibilitem expressões corporais sensíveis, não instrumentalizadas e pragmáticas, voltadas a participação solidária e crítica dos alunos e alunas em suas diferenças, sejam elas quais forem.

    O segundo ponto diz respeito às metodologias interdisciplinares que, ao enfatizarem os conteúdos de forma global fazendo o entrelaçamento com os vários saberes presentes na escola, rompem com as dicotomias ação/reflexão, subjetividade/objetividade, levando professores e professoras, alunos e alunas, a assumirem novas configurações e posições na construção do conhecimento, talvez, no caminho da interdisciplinaridade que concebemos como um processo gradativo e que constantemente incorpora novos níveis de complexidade à medida que se realiza, "como uma verdadeira práxis" (Lück, 1994, p. 79).

    Acredita-se no potencial que cada professor e professora possuem como intelectuais, capazes de elaborarem e ressignificarem seu saber/fazer pedagógico, possibilitando aos alunos e alunas variadas formas de se expressarem, utilizando das diversas linguagens: oral, escrita, pictórica, gestual e fotográfica, ampliando suas reais possibilidade de compreensão, participação e intervenção na realidade.

    Aqui, é oportuno citar Marques (2001) quando ele nos chama a atenção para as diferentes expressões do conhecimento que não podem ser apreendidas pela palavra, mas manifestas através do corpo, do movimento, do sentimento, emoção, jogo, imaginação, sensibilidade, na realização e reconhecimento de si, dos outros e do mundo. Marques se refere a esse fenômeno como "ligado à dimensão criativa dos muitos mundos possíveis" (Marques op. cit., p.52); a mimese como manifestação da razão, do imaginário, expressão das experiências internas e extra-racionais.

    Deve-se estar atento "com os contextos e processos socialmente estruturados nos quais as formas simbólicas estão inseridas" (Thompson, 1995, p.182).

    É de fundamental importância que através de intervenções pedagógicas, esses processos culturais sejam desencadeados, trazendo a tona conflitos e entendimentos, mediante os quais as circunstâncias possam ser construídas pelos sujeitos envolvidos na ação pedagógica, onde a alteridade, o respeito pelo Outro, façam-se presentes nas prática cotidianas escolares.

    Essas circunstâncias devem possibilitar uma aproximação, uma "aventura de colocar-se no lugar do outro, de ver como o outro vê, de compreender um conhecimento que não é o nosso" (Gusmão op. cit., p. 8). Os desdobramentos de tal entendimento apresentam rupturas de caráter epistemológico, visto que professor(a)/aluno(a) podem reelaborar o conhecimento e o aprender/ensinar juntos; como também, o professor pode ter uma outra postura diante do aluno, mais relacional e democrática.

    Esse entendimento do Outro como diferente busca romper com a visão antropológica evolucionista que distinguia os seres humanos em lógico e não-lógico, bárbaro e civilizado, nós e eles. Busca ainda, inaugurar um olhar em relação ao Outro de singularidade e diversidade; tentativa de captar no outro sua intencionalidade, necessidades e expectativas que poderão ser diferentes e peculiares a cada ser humano. Nesse sentido, Gusmão enfatiza que o "olhar antropológico', não é o único olhar, mas qualquer que seja ele, é dependente de pressupostos que orientam as perguntas e indicam caminhos de busca das possíveis respostas" (Gusmão, op. cit., p. 18).

    Acredita-se que a educação precisa rever suas bases de sustentação ideológica de cunho positivista, materializadas nas escolas através dos currículos, das "técnicas" de ensino-aprendizagem, das relações hierarquizadas perpassadas de autoritarismo e obediência às normas. Rever, ainda, os conteúdos diretamente ligados às Ciências Sociais que contemplam uma história meramente descritiva, narrando os acontecimentos sociais como processos "naturais", camuflando assim, as diferenças historicamente produzidas.

    Entende-se que uma das grandes contribuições da Antropologia à Educação está situada no fato de relativizar o olhar em relação ao Outro, ajudando a compreendê-lo em seu contexto histórico e ao sentido que os indivíduos dão as suas práticas e concepções de mundo. Dentro dessa perspectiva e "através das diferenças sociais, a Antropologia convida ao exercício da crítica cultural, trazendo à nossa visão os significados sociais que grupos diversos manifestam em situações análogas" (Dauster in Brandão, 1999, p. 84).

    A Antropologia pode contribuir com a Educação Física, uma vez que esta entenda a cultura de seus alunos, como "uma infinidade de códigos estabelecidos e possíveis... entre fragmentos conflituais e diversificados que representam o cenário pluralístico das culturas contemporâneas" (Canevacci in Trindade, 200, p. 123).

    Se Educação Física até então, preocupou-se principalmente com a formação de um tipo ideal de corpo, de talentos esportivos e de performances, talvez seja hora de assumirmos uma atuação pedagógica mais plural, voltada ao atendimento de indivíduos com desejos, sonhos e expectativas diversificadas, conjecturadas em contextos sociais distintos, contribuindo e participando de um projeto social pautado na solidariedade.

    O grande desafio para os educadores é conceber as salas de aulas, quadras e demais espaços escolares, como um campo etnográfico, "olhando", assumindo e se comprometendo, com uma educação voltada ao atendimento das diferenças em seus variados níveis, sem perder de vista metas que devem ser comuns a todos: sua participação e intervenção política nos processos sociais com vistas à emancipação humana.


Conclusão

    O artigo enfatiza como a sociedade desde tempos remotos tem segregado os grupos de pessoas, e como a educação física tem participado intimamente deste processo, mesmo involuntariamente, através da sociedade de consumo que procura por estereótipos. Percebe-se como há necessidade de mudanças nos planos de ensino para que essa barbárie social termine, mas para isso deve-se cultivar desde cedo o amor pela essência, e não pela aparência.


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revista digital · Año 11 · N° 104 | Buenos Aires, Enero 2007  
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