Rabelais: a educação contra a lassidão corporal | |||
Professor do Departamento de Pedagogia. UNICENTRO. Guarapuava, PR. |
Carlos Herold Junior carlosherold@hotmail.com (Brasil) |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 103 - Diciembre de 2006 |
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Introdução
Os avanços tecnológicos vêm colocando condições novas e interessantes para o cuidado do corpo. Saúde, beleza, resistência, mobilidade, temperança, enfim, uma série de adjetivos ligados ao corpo são alvos de um grande elogio. No lado oposto, a preguiça, o sedentarismo, a obesidade ou a falta de resistência são referências obrigatórias para aqueles que não se entregam de alguma maneira a estes cuidados.
Essa preocupação, quando adjetivada como "racional" e "sem exageros", é vista como fonte, além de um corpo forte e esteticamente agradável, de um conjunto de características volitivas e comportamentais igualmente elogiados pela sociedade. Qualquer meio de comunicação veicula essa moderação como a rota à felicidade.
Igualmente interessante, é observar que também qualquer meio de comunicação exibe um culto desmesurado do corpo, cujos resultados são acirradamente debatidos tanto por sociólogos e professores, como por igreja e pais. Parece que o exagero, no que diz respeito ao corpo, é rechaçado de forma intensa, como não educativo, em um senso socialmente reprovável.
O que é questionável e possuidor de características de um interessante objeto de análise é o fato da sociedade elogiar um comportamento e veicular outro, tal qual acontece com os meios de comunicação. O que, então, melhor expressa a sociedade hodierna: o culto ao equilíbrio elogiado, ou o desmesuramento consumido e criador de comportamentos aceitos em larga escala1? Goldenberg e Ramos (2002) ao estudar a corpolatria no Rio de Janeiro, esboçam uma resposta:
Nesse processo de responsabilização do indivíduo pelo seu corpo, a partir do princípio de autoconstrução, a mídia e, especialmente a publicidade têm um papel fundamental. O corpo virou "o mais belo objeto de consumo" e a publicidade, que antes só chamava atenção para um produto exaltando suas vantagens, hoje em dia serve, principalmente, para produzir o consumo como estilo de vida, procriando um produto próprio: o consumidor, perpetuamente intranqüilo e insatisfeito com a sua aparência. Com isso, saem ganhando, entre outros, os mercados dos cosméticos, das cirurgias estéticas e da malhação (2002, p.33).
Para também colaborar com uma resposta que tão interessa àqueles que têm o corpo como centro da ação educativa, buscar na história como alguns pensadores olharam para a questão educativa do corpo configura-se em um importante referencial. Nesse sentido, tendo por base a sociedade que olha para o corpo de forma contraditória, procuraremos analisar a sociedade em que Rabelais viveu e pensou, entre outras coisas, a educação física.
Considerando o fato desse pensador ter vivido em um contexto de intensas transformações, procuraremos desvendar como o corpo fora visto, relacionando esta visão com a luta pela construção e/ou manutenção de estruturas sociais.
Tendo este objetivo a frente, utilizaremos a obra de Rabelais, Gargântua e Pantagruel (1541) para fazer as observações sobre a forma como o corpo aparece enquanto educativo bem como a sátira que o autor utiliza para defender suas idéias.
As gargalhadas para o corpo fatigadoRabelais (1490-1593) destaca-se pela sua originalidade em satirizar as decadentes relações educativas que decorriam da dissolução da sociedade feudal.
Rabelais publica a saga de Gargântua e Pantagruel (1541), aos cinqüenta e um anos de idade. Nela, destaca-se a forma engraçada de ver a educação calcada em velhos preceitos, como viciosa, suja, doente e depravada, e de higienizá-la se novos procedimentos fossem adotados. O corpo, sobretudo, assume uma dimensão muito importante na obra, ao ser utilizado como um ponto incisivo na crítica ao comportamento desregrado, glutão e preguiçoso dos pais, do seu séquito e do próprio Gargântua antes de começar a ser educado de acordo com as novas idéias.
No contexto de luta que participava, Rabelais, pelas suas idéias, colocava-se a favor da nova forma de ser da sociedade. Tanto pela sua crítica à educação, como pela sua linguagem incisiva e extremamente sarcástica, percebe-se a subversão que vem ocorrendo entre as classes sociais, como nessa passagem: "vários que são hoje imperadores, reis, duques príncipes e papas na terra, descenderam de coletores de restos e de lixo. E, ao revés, há mendigos, sofredores e miseráveis, que descendem em linha reta de grandes reis e imperadores" (1991, p.38). Verifica-se aí a importância atribuída ao papel construtor da educação. Educado "corretamente", longe dos vícios, da preguiça e da morosidade, um mendigo torna-se um rei, numa alusão à riqueza conquistada pelo trabalho. Mas um "rei" acostumado a viver da riqueza pilhada pelas guerras e sem nenhum trabalho corre sério risco de fazer o caminho inverso. Parece claro a Rabelais a decadência da classe feudal e a ascensão da classe burguesa.
Suas idéias sobre a educação do corpo estão em oposição à ociosidade, ao desregramento da alimentação e à falta de higiene. Aliás, poucos conseguiram, como ele, tornar o riso, que provocava, tão esclarecedor a respeito das limitações do decadente mundo feudal. Suas descrições sobre o comportamento de Gargântua são elucidativas de uma época, por isso narra a história ora como tragédia, ora como comédia. A sujeira, a gula, a preguiça, a falta de inteligência expressam, na verdade, a decadência da estrutura social feudal ou sua debilidade em regular o comportamento dos homens.
Tal debilidade fica ainda mais evidente quando o pai de Gargântua percebe que, apesar dos gastos com sua educação e da quantidade de textos que estudara, o pequeno jovem não conseguia conversar em público. Frente a um outro menino que, racionalmente educado, deu início à conversa, Gargântua chorou2. Este choro tem um significado histórico profundo de decadência de toda a velha forma de educar.
Os jogos que o menino praticava antes de ser entregue aos novos procedimentos educacionais são marcados pela sua inutilidade e ociosidade3. Sem dúvida alguma, estes folguedos, segundo Rabelais, só fariam piorar a situação daquele que um dia, após um nascimento tão peculiar4 foi tido como um futuro grande homem.
Percebida esta situação de debilidade tanto física quanto moral e intelectual, o pai de Gargântua tratou de mudar a situação do filho, ou seja, refazer sua educação. Despediu o velho preceptor e entregou seu filho a outro. Era comum na época de Rabelais os pais, não sabendo como educar seus filhos numa sociedade em transformação, serem aconselhados pelos filósofos a substituírem seus métodos e contratar preceptores mais qualificados.
Longe da família, Gargântua teve condições de ser educado de maneira realmente integral. Após ter constatado a situação desregrada, imunda e ociosa do menino, o novo preceptor tratou de começar a construir um novo homem. Verifica-se a importância dada pelo autor à higiene, saúde e aos exercícios físicos na nova educação.
O dia de Gargântua começava cedo, com muita higiene, exercícios e alimentação cuidada. As lições, com os autores antigos, eram dadas durante essas atividades com ênfase nos temas importantes para a vida de um grande homem tais como: sapiência, humildade, benevolência, coragem, determinação, saúde. Os conteúdos livrescos foram abandonados pelo conhecimento exigido pela prática da vida; a glutonice e a ociosidade foram suplantadas pelo cuidado com a saúde e com a dedicação plena aos exercícios.
Nota-se que, se fora difícil a Gargântua no início de sua nova rotina, após determinado tempo, o menino estava tão acostumado a ela que seria difícil viver de outra maneira. E isto Rabelais retrata muito bem ao narrar as aventuras, proezas e homenagens recebidas por Gargântua, devido às suas qualidades físicas e morais.
Gargântua é um exemplo clássico da crença no poder da educação na transformação do homem. Ele, que vivia numa situação tal de descontrole, excessos, preguiça e ociosidade, se transforma em um homem vigoroso, inteligente, cultivador da saúde, do trabalho e das virtudes. A diferença entre a primeira situação e a segunda, encontra-se na maneira pela qual o preceptor trabalhou a educação física de seu aluno.
Para executar tal mudança, Rabelais estava fortemente calcado nos ideais de coragem, valentia, força, temperança e sabedoria, resgatados da Antigüidade Clássica, para ajudar os homens na difícil tarefa de se conduzir e viver em uma sociedade em transição. Vale notar que, no decorrer da obra, a utilidade social desta nova orientação educativa para o corpo produziu resultados práticos e concretos bastante contundentes, haja vista os feitos de Gargântua ao retornar à sua casa por solicitação de seu pai5.
Dessa maneira, percebe-se em sua obra, novas relações sociais nascendo e fazendo a crítica aos velhos procedimentos, entre eles a desconsideração pela dimensão corporal da educação. Consciente da importância que a nova prática social dava ao desenvolvimento físico do indivíduo e sendo o corpo desprezado pelos medievais, ele se apoiou nos ideais educativos das antigas sociedades grega e romana. Era a nova sociedade que, ao começar mostrar-se, fazia com que os homens procurassem no passado para além da sociedade feudal, como encontraram na Antigüidade, inspiração para enfrentarem o difícil processo que foi o nascimento da sociedade moderna. Nesse processo mais amplo de transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa é que as novas idéias educacionais, como as de Rabelais, explicam-se.
ConclusãoIniciamos este estudo com a constatação perturbadora que o corpo é elogiado de forma contraditória pela sociedade. Educá-lo fisicamente, ora pressupõe o equilíbrio com outras modalidades de educação (intelectual e moral), ora o culto intenso dessa modalidade como fonte de prazer e satisfação individual. Tendo em frente esta contradição, optamos por analisar Rabelais e verificar como este autor viu a questão da educação corporal.
Para o escritor francês um homem útil, sábio e virtuoso, só nasce tendo por base uma educação que, entre outras coisas, harmonize a educação corporal de forma competente. Frente à decadente sociedade feudal, a disciplina, a saúde, a temperança, a resistência seriam a base de outras características psicológicas e, consequentemente, de outro homem. A preguiça e uma educação que não contemplasse de modo igualitário as três dimensões educativas eram rechaçadas como fonte de homens idiotas e que só mereceriam o escárnio.
Após isso, podemos concluir que nos albores da sociedade capitalista, um corpo forte, equilibradamente educado e saudável era a busca dos educadores, dentre eles, a educação passível de encontrada na obra de Rabelais. Essa busca objetivou a formação de um homem que pudesse pôr termo ao "hilário" metabolismo social em que vivia o escritor francês e, que , pelo escárnio, mostrava todo o seu desacordo.
Tendo por base o esforço de Rabelais em pensar a o corpo e sua educação nos albores da modernidade, notamos, ao contemplar a atualidade, que a questão torna-se mais complexa: no meio de discursos contraditórios que elogiam o corpo de modo diferente, qual deles é a expressão de uma nova forma social e de um novo homem? Mais uma vez , vamos ao encontro de Goldenberg e Faria (2002), que dizem: "É interessante destacar o paradoxo que o culto ao corpo gera nessa cultura de classe média. Quanto mais se impõe o ideal de autonomia individual, mais aumenta a exigência de conformidade aos modelos sociais do corpo" (p.09). Esta complexidade turva a visão e tira a capacidade dos analistas contemporâneos de usar aquilo que era tão usado por Rabelais para definir o que era velho e o que era novo: o riso. Talvez, o humor Rabelaisiano possa ser explicado pela certeza de que sua proposta educacional levaria o indivíduo a destruir relações sociais decadentes. Ao passo que a atual "sisudez", também hipoteticamente, advém da dificuldade em se elaborar um discurso e/ou práticas corporais que não endossem relações sociais fetichizadas e alienantes.
Notas
Ver as reflexões de Gaiarsa (1991) para se ter uma idéia de como algo tão elogiado é também castigado ou ignorado no interior do próprio elogio.
Ver Capítulo XV - De como Gargântua estudou com outros pedagogos. p.93-95
Ver Capítulo XXII - Os jogos de Gargântua.p.118-123.
Ver Capítulo VI - De como Gargântua nasceu de um modo bem estranho.p.55-59.
Para se ter idéia dos feitos de Gargântua após a nova educação, ver o Capítulo XLVIII - De como Gargântua atacou Picrochol dentro de Roche-clermauld e desbaratou o exército do referido Picrochole. p.225-230.
Referências bibliográficas
GAIARSA, J. A O que é corpo. 4º ed. São Paulo : Editora Brasiliense, 1991.
GOLDENBERG, M & RAMOS, M. A civilização das formas: o corpo como valor. In: Nu & Vestido. Rio de Janeiro : Record, 2002. P.19-40.
RABELAIS, F. Gargântua e Pantagruel. Belo Horizonte : Villa Rica, 1991. V.I-II.
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