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Rabelais: a educação contra a lassidão corporal

   
Professor do Departamento de Pedagogia.
UNICENTRO.
Guarapuava, PR.
 
 
Carlos Herold Junior
carlosherold@hotmail.com
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
     Partindo da constatação de que na atualidade os profissionais de educação física buscam uma forma de se pensar e educar o corpo que não endosse relações sociais fetichizadas e voltadas para a reprodução do Capital, objetivo deste trabalho é verificar como François Rabelais, pensou a educação do corpo no interior da sociedade francesa do século XV. Para tanto, foi feita uma análise histórica da obra Gargântua e Pantagruel, buscando verificar como o escritor francês utilizada sua agressiva sátira para mostrar a forma correta de se educar o corpo. Após a análise, pudemos verificar que educação corporal para Rabelais é a possibilidade de se formar um homem livre dos valores da decadente sociedade feudal e atinado com uma sociedade menos "cômica".
    Unitermos: Rabelais, educação física, transformação social.
 
Abstract
     Beginning with the fact that nowadays physical education teachers search for a way to think and educate the body that does not scaffold social relations which unconciously are shifted to the reproduction of capital, the aim of this work is to analise how François Rabelais, thought physical education in French Society on XV century. For that, it was done an historical approach of Gargantua and Pantagruel, attempting to verify how the French writer deployed his agressive satire in order to reveal the correct way of educating the body. After all studies, we could verify that physical education, in Rabelais' view, is the possibility to instruct a men rid of the decadent values of feudal society and attached with a society less "hilarious".
    Keywords: Rabelais. Physical Education. Social transformation.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 103 - Diciembre de 2006

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Introdução

    Os avanços tecnológicos vêm colocando condições novas e interessantes para o cuidado do corpo. Saúde, beleza, resistência, mobilidade, temperança, enfim, uma série de adjetivos ligados ao corpo são alvos de um grande elogio. No lado oposto, a preguiça, o sedentarismo, a obesidade ou a falta de resistência são referências obrigatórias para aqueles que não se entregam de alguma maneira a estes cuidados.

    Essa preocupação, quando adjetivada como "racional" e "sem exageros", é vista como fonte, além de um corpo forte e esteticamente agradável, de um conjunto de características volitivas e comportamentais igualmente elogiados pela sociedade. Qualquer meio de comunicação veicula essa moderação como a rota à felicidade.

    Igualmente interessante, é observar que também qualquer meio de comunicação exibe um culto desmesurado do corpo, cujos resultados são acirradamente debatidos tanto por sociólogos e professores, como por igreja e pais. Parece que o exagero, no que diz respeito ao corpo, é rechaçado de forma intensa, como não educativo, em um senso socialmente reprovável.

    O que é questionável e possuidor de características de um interessante objeto de análise é o fato da sociedade elogiar um comportamento e veicular outro, tal qual acontece com os meios de comunicação. O que, então, melhor expressa a sociedade hodierna: o culto ao equilíbrio elogiado, ou o desmesuramento consumido e criador de comportamentos aceitos em larga escala1? Goldenberg e Ramos (2002) ao estudar a corpolatria no Rio de Janeiro, esboçam uma resposta:

Nesse processo de responsabilização do indivíduo pelo seu corpo, a partir do princípio de autoconstrução, a mídia e, especialmente a publicidade têm um papel fundamental. O corpo virou "o mais belo objeto de consumo" e a publicidade, que antes só chamava atenção para um produto exaltando suas vantagens, hoje em dia serve, principalmente, para produzir o consumo como estilo de vida, procriando um produto próprio: o consumidor, perpetuamente intranqüilo e insatisfeito com a sua aparência. Com isso, saem ganhando, entre outros, os mercados dos cosméticos, das cirurgias estéticas e da malhação (2002, p.33).

    Para também colaborar com uma resposta que tão interessa àqueles que têm o corpo como centro da ação educativa, buscar na história como alguns pensadores olharam para a questão educativa do corpo configura-se em um importante referencial. Nesse sentido, tendo por base a sociedade que olha para o corpo de forma contraditória, procuraremos analisar a sociedade em que Rabelais viveu e pensou, entre outras coisas, a educação física.

    Considerando o fato desse pensador ter vivido em um contexto de intensas transformações, procuraremos desvendar como o corpo fora visto, relacionando esta visão com a luta pela construção e/ou manutenção de estruturas sociais.

    Tendo este objetivo a frente, utilizaremos a obra de Rabelais, Gargântua e Pantagruel (1541) para fazer as observações sobre a forma como o corpo aparece enquanto educativo bem como a sátira que o autor utiliza para defender suas idéias.


As gargalhadas para o corpo fatigado

    Rabelais (1490-1593) destaca-se pela sua originalidade em satirizar as decadentes relações educativas que decorriam da dissolução da sociedade feudal.

    Rabelais publica a saga de Gargântua e Pantagruel (1541), aos cinqüenta e um anos de idade. Nela, destaca-se a forma engraçada de ver a educação calcada em velhos preceitos, como viciosa, suja, doente e depravada, e de higienizá-la se novos procedimentos fossem adotados. O corpo, sobretudo, assume uma dimensão muito importante na obra, ao ser utilizado como um ponto incisivo na crítica ao comportamento desregrado, glutão e preguiçoso dos pais, do seu séquito e do próprio Gargântua antes de começar a ser educado de acordo com as novas idéias.

    No contexto de luta que participava, Rabelais, pelas suas idéias, colocava-se a favor da nova forma de ser da sociedade. Tanto pela sua crítica à educação, como pela sua linguagem incisiva e extremamente sarcástica, percebe-se a subversão que vem ocorrendo entre as classes sociais, como nessa passagem: "vários que são hoje imperadores, reis, duques príncipes e papas na terra, descenderam de coletores de restos e de lixo. E, ao revés, há mendigos, sofredores e miseráveis, que descendem em linha reta de grandes reis e imperadores" (1991, p.38). Verifica-se aí a importância atribuída ao papel construtor da educação. Educado "corretamente", longe dos vícios, da preguiça e da morosidade, um mendigo torna-se um rei, numa alusão à riqueza conquistada pelo trabalho. Mas um "rei" acostumado a viver da riqueza pilhada pelas guerras e sem nenhum trabalho corre sério risco de fazer o caminho inverso. Parece claro a Rabelais a decadência da classe feudal e a ascensão da classe burguesa.

    Suas idéias sobre a educação do corpo estão em oposição à ociosidade, ao desregramento da alimentação e à falta de higiene. Aliás, poucos conseguiram, como ele, tornar o riso, que provocava, tão esclarecedor a respeito das limitações do decadente mundo feudal. Suas descrições sobre o comportamento de Gargântua são elucidativas de uma época, por isso narra a história ora como tragédia, ora como comédia. A sujeira, a gula, a preguiça, a falta de inteligência expressam, na verdade, a decadência da estrutura social feudal ou sua debilidade em regular o comportamento dos homens.

    Tal debilidade fica ainda mais evidente quando o pai de Gargântua percebe que, apesar dos gastos com sua educação e da quantidade de textos que estudara, o pequeno jovem não conseguia conversar em público. Frente a um outro menino que, racionalmente educado, deu início à conversa, Gargântua chorou2. Este choro tem um significado histórico profundo de decadência de toda a velha forma de educar.

    Os jogos que o menino praticava antes de ser entregue aos novos procedimentos educacionais são marcados pela sua inutilidade e ociosidade3. Sem dúvida alguma, estes folguedos, segundo Rabelais, só fariam piorar a situação daquele que um dia, após um nascimento tão peculiar4 foi tido como um futuro grande homem.

    Percebida esta situação de debilidade tanto física quanto moral e intelectual, o pai de Gargântua tratou de mudar a situação do filho, ou seja, refazer sua educação. Despediu o velho preceptor e entregou seu filho a outro. Era comum na época de Rabelais os pais, não sabendo como educar seus filhos numa sociedade em transformação, serem aconselhados pelos filósofos a substituírem seus métodos e contratar preceptores mais qualificados.

    Longe da família, Gargântua teve condições de ser educado de maneira realmente integral. Após ter constatado a situação desregrada, imunda e ociosa do menino, o novo preceptor tratou de começar a construir um novo homem. Verifica-se a importância dada pelo autor à higiene, saúde e aos exercícios físicos na nova educação.

    O dia de Gargântua começava cedo, com muita higiene, exercícios e alimentação cuidada. As lições, com os autores antigos, eram dadas durante essas atividades com ênfase nos temas importantes para a vida de um grande homem tais como: sapiência, humildade, benevolência, coragem, determinação, saúde. Os conteúdos livrescos foram abandonados pelo conhecimento exigido pela prática da vida; a glutonice e a ociosidade foram suplantadas pelo cuidado com a saúde e com a dedicação plena aos exercícios.

    Nota-se que, se fora difícil a Gargântua no início de sua nova rotina, após determinado tempo, o menino estava tão acostumado a ela que seria difícil viver de outra maneira. E isto Rabelais retrata muito bem ao narrar as aventuras, proezas e homenagens recebidas por Gargântua, devido às suas qualidades físicas e morais.

    Gargântua é um exemplo clássico da crença no poder da educação na transformação do homem. Ele, que vivia numa situação tal de descontrole, excessos, preguiça e ociosidade, se transforma em um homem vigoroso, inteligente, cultivador da saúde, do trabalho e das virtudes. A diferença entre a primeira situação e a segunda, encontra-se na maneira pela qual o preceptor trabalhou a educação física de seu aluno.

    Para executar tal mudança, Rabelais estava fortemente calcado nos ideais de coragem, valentia, força, temperança e sabedoria, resgatados da Antigüidade Clássica, para ajudar os homens na difícil tarefa de se conduzir e viver em uma sociedade em transição. Vale notar que, no decorrer da obra, a utilidade social desta nova orientação educativa para o corpo produziu resultados práticos e concretos bastante contundentes, haja vista os feitos de Gargântua ao retornar à sua casa por solicitação de seu pai5.

    Dessa maneira, percebe-se em sua obra, novas relações sociais nascendo e fazendo a crítica aos velhos procedimentos, entre eles a desconsideração pela dimensão corporal da educação. Consciente da importância que a nova prática social dava ao desenvolvimento físico do indivíduo e sendo o corpo desprezado pelos medievais, ele se apoiou nos ideais educativos das antigas sociedades grega e romana. Era a nova sociedade que, ao começar mostrar-se, fazia com que os homens procurassem no passado para além da sociedade feudal, como encontraram na Antigüidade, inspiração para enfrentarem o difícil processo que foi o nascimento da sociedade moderna. Nesse processo mais amplo de transição da sociedade feudal para a sociedade burguesa é que as novas idéias educacionais, como as de Rabelais, explicam-se.


Conclusão

    Iniciamos este estudo com a constatação perturbadora que o corpo é elogiado de forma contraditória pela sociedade. Educá-lo fisicamente, ora pressupõe o equilíbrio com outras modalidades de educação (intelectual e moral), ora o culto intenso dessa modalidade como fonte de prazer e satisfação individual. Tendo em frente esta contradição, optamos por analisar Rabelais e verificar como este autor viu a questão da educação corporal.

    Para o escritor francês um homem útil, sábio e virtuoso, só nasce tendo por base uma educação que, entre outras coisas, harmonize a educação corporal de forma competente. Frente à decadente sociedade feudal, a disciplina, a saúde, a temperança, a resistência seriam a base de outras características psicológicas e, consequentemente, de outro homem. A preguiça e uma educação que não contemplasse de modo igualitário as três dimensões educativas eram rechaçadas como fonte de homens idiotas e que só mereceriam o escárnio.

    Após isso, podemos concluir que nos albores da sociedade capitalista, um corpo forte, equilibradamente educado e saudável era a busca dos educadores, dentre eles, a educação passível de encontrada na obra de Rabelais. Essa busca objetivou a formação de um homem que pudesse pôr termo ao "hilário" metabolismo social em que vivia o escritor francês e, que , pelo escárnio, mostrava todo o seu desacordo.

     Tendo por base o esforço de Rabelais em pensar a o corpo e sua educação nos albores da modernidade, notamos, ao contemplar a atualidade, que a questão torna-se mais complexa: no meio de discursos contraditórios que elogiam o corpo de modo diferente, qual deles é a expressão de uma nova forma social e de um novo homem? Mais uma vez , vamos ao encontro de Goldenberg e Faria (2002), que dizem: "É interessante destacar o paradoxo que o culto ao corpo gera nessa cultura de classe média. Quanto mais se impõe o ideal de autonomia individual, mais aumenta a exigência de conformidade aos modelos sociais do corpo" (p.09). Esta complexidade turva a visão e tira a capacidade dos analistas contemporâneos de usar aquilo que era tão usado por Rabelais para definir o que era velho e o que era novo: o riso. Talvez, o humor Rabelaisiano possa ser explicado pela certeza de que sua proposta educacional levaria o indivíduo a destruir relações sociais decadentes. Ao passo que a atual "sisudez", também hipoteticamente, advém da dificuldade em se elaborar um discurso e/ou práticas corporais que não endossem relações sociais fetichizadas e alienantes.


Notas

  1. Ver as reflexões de Gaiarsa (1991) para se ter uma idéia de como algo tão elogiado é também castigado ou ignorado no interior do próprio elogio.

  2. Ver Capítulo XV - De como Gargântua estudou com outros pedagogos. p.93-95

  3. Ver Capítulo XXII - Os jogos de Gargântua.p.118-123.

  4. Ver Capítulo VI - De como Gargântua nasceu de um modo bem estranho.p.55-59.

  5. Para se ter idéia dos feitos de Gargântua após a nova educação, ver o Capítulo XLVIII - De como Gargântua atacou Picrochol dentro de Roche-clermauld e desbaratou o exército do referido Picrochole. p.225-230.


Referências bibliográficas

  • GAIARSA, J. A O que é corpo. 4º ed. São Paulo : Editora Brasiliense, 1991.

  • GOLDENBERG, M & RAMOS, M. A civilização das formas: o corpo como valor. In: Nu & Vestido. Rio de Janeiro : Record, 2002. P.19-40.

  • RABELAIS, F. Gargântua e Pantagruel. Belo Horizonte : Villa Rica, 1991. V.I-II.

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