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Equipe multiprofissional na escola especial:
a educação física em questão

   
*Professor da Escola Especial Santa Rita - APAE -
Londrina. Especialista em Educação Especial.
**Especialista em Educação Especial.
***Professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste -
UNICENTRO. Doutor em Educação Física - UNICAMP.
****Professora da Universidade Estadual de Londrina -
UEL. Doutora em Educação Física - UNICAMP.
 
 
Gabriel de Oliveira Feijó*  
Marcio Rafael da Silva**  
Gilmar de Carvalho Cruz***  
Jeane Barcelos Soriano****
gilmarcruz@onda.com.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
     O presente estudo objetivou identificar como profissionais de Educação Física caracterizam sua contribuição específica dentro de uma equipe multidisciplinar, além de analisar como se dá a interação entre o profissional de Educação Física e os demais profissionais inseridos em instituições consideradas especializadas na oferta de serviços a pessoas que apresentam deficiência mental. Participaram do estudo cinco profissionais de Educação Física, vinculados a instituições distintas que oferecem serviços a pessoas que apresentam deficiência mental em instituições de uma cidade paranaense. A coleta de dados se deu por intermédio de entrevista individual não estruturada. Os dados coletados indicam que a interação entre distintas áreas de intervenção profissional passa pela delimitação de suas funções específicas. Pode-se considerar que cabe à área de intervenção profissional denominada Educação Física proporcionar aos usuários de seus serviços condições de movimentar-se para interagir com seu ambiente físico-social de modo cada vez mais satisfatório às suas necessidades, levando em conta o patrimônio cultural do movimento corporal humano. Essa perspectiva não pode se perder no contexto da intervenção profissional em uma equipe multiprofissional.
    Unitermos: Educação Física. Equipe multiprofissional. Escola especial.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 103 - Diciembre de 2006

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Introdução

    A complexidade e inter-relação entre diversas variáveis, em diversos setores da sociedade têm exigido respostas que demandam, necessariamente, a interação de dois ou mais grupos profissionais junto a um determinado problema. As possibilidades de respostas advindas desse tipo de interação perpassam desde aspectos relacionados à articulação de diferentes recursos e olhares diante de uma demanda, até a possibilidade de um certo ganho de qualidade e eficiência no tipo de resposta a ser oferecida, já que a fragmentação advinda de sub-disciplinas e sub-especialidades não contempla a necessidade de articulação de diferentes tipos de saberes e recursos (MINELLI, 2004).

    Nas instituições que atendem, no âmbito das necessidades especiais, pessoas com deficiência mental a formação dessa equipe é um procedimento comum. Portanto, é possível observar nessas instituições a reunião de diferentes áreas de intervenção profissional, dentre elas a Educação Física, com o intuito de elevar a qualidade do serviço por elas ofertado. O caráter multidisciplinar presente nessa intervenção profissional pode ser considerado, em larga medida, conseqüência da complexidade que envolve a oferta de serviços para pessoas com necessidades especiais. Nesse cenário, cada profissional que participa da equipe (profissionais da Fisioterapia, Psicologia, Pedagogia, Serviço Social e Educação Física, por exemplo) deve ter claro o objetivo e as delimitações de sua intervenção dentro das instituições nas quais atuam.

    Todavia, é comum na intervenção profissional caracterizada como multiprofissional a presença de confusões entre jurisdições e reivindicações, sobretudo quando a compreendemos como uma estrutura social. Os embates e confusões jurisdicionais podem acontecer em diversas situações, como no sistema legal, por exemplo, que pode conferir o controle formal da intervenção. Outro embate conhecido diz respeito à própria opinião pública. Nesse caso, as imagens que as profissões constroem no contexto social no qual estão inseridas acabam pressionando o sistema legal. Temos também as reivindicações feitas no próprio local da intervenção, que tornam os limites interprofissionais fluidos e flexíveis (ABBOTT, 1988).

    A falta de conhecimento das delimitações de cada área de atuação profissional gera como conseqüência uma confusão de papéis das áreas envolvidas na intervenção multiprofissional. Esta situação é destacada no trabalho com deficientes mentais por Gimenez (2001). Ele observa a existência de situações nas quais profissionais da Educação Física e da Fisioterapia entram em conflito em função de determinada intervenção ser realizada pelas duas áreas, ocasionando conflitos de ordem profissional. Do mesmo modo Bosi (1996) encontra esta situação presente na relação entre profissionais da nutrição e da medicina. A autora menciona a situação de profissionais da nutrição que participam de equipes multiprofissionais atuantes em hospitais, destacando o aspecto insegurança apresentado por nutricionistas em relação aos seus conhecimentos. Essa insegurança pode fragilizar a classe profissional e submeter a própria profissão a uma condição de menor importância dentro da equipe multiprofissional.

    Em função das características peculiares de pessoas com necessidades especiais, o ramo da Educação Física que assume a responsabilidade de atende-las vem sendo denominado Educação Física Adaptada. Trata-se da adoção de uma terminologia que melhor traduza os propósitos que a orientam, não obstante questionamentos sobre o caráter "adaptado" da Educação Física acompanhem algumas das discussões conceituais da área. Pedrinelli e Verenguer (2005, p.4) consideram a Educação Física Adaptada:

Uma parte da Educação Física, cujos objetivos são o estudo e a intervenção profissional no universo das pessoas que apresentam diferentes e peculiares condições para a prática das atividades físicas. Seu foco é o desenvolvimento da cultura corporal de movimento. Atividades como ginástica, dança, jogos e esporte, conteúdos de qualquer programa de atividade física, devem ser consideradas tendo em vista o potencial de desenvolvimento pessoal (e não a deficiência em si).

    Pode-se assumir, portanto, que o propósito da intervenção do professor que atua no campo da Educação Física Adaptada é potencializar as possibilidades de participação ativa de pessoas com necessidades especiais, em programas com foco na atividade física / movimento corporal humano. Do mesmo modo podemos considerar que a sustentação para a intervenção profissional junto a essas pessoas encontra-se em fase de construção, carecendo da produção de conhecimento capaz de contribuir para a mudança do contexto dessa intervenção (CARMO, 2002).

    Mesmo em instituições "especializadas" é possível presenciar a fragilidade da formação dos profissionais de Educação Física para a atuação com pessoas que apresentem necessidades especiais. Foi o que verificou Araújo (1999), ao investigar a participação de professores de Educação Física em equipes multiprofissionais de atendimento a pessoas com necessidades especiais na cidade de Campinas-SP. Ele destaca a carência de "bibliografia específica para os cursos de graduação e para os profissionais se fundamentarem no trabalho com esta clientela" (ARAÚJO, 1999, p.70), assim como o caráter recente dos cursos de pós-graduação em Educação Física, comprometedor da massa crítica para o atendimento da demanda profissional existente.

    A contribuição que a Educação Física Adaptada, entendida como vertente da Educação Física comum, pode dar ao aprimoramento dos serviços destinados a pessoas com necessidades especiais passa pelo seu engajamento em questões mais amplas que acompanham a própria Educação Física. É necessário que a especificidade de uma determinada situação de intervenção não a descole da paisagem da qual ela faz parte. Neste sentido cabe mencionar que uma característica ainda pouco comum na intervenção do profissional de Educação Física diz respeito à explicitação de elementos indicadores de sua especificidade, quais sejam: (a) o reconhecimento de uma perícia (expertise) ou conhecimento e técnicas especializados; (b) a autonomia no processo de tomar decisões, que reflete uma certa independência na execução das atividades profissionais; e (b) a necessidade de credenciamento, como forma de reconhecimento, tanto do conhecimento específico, como também, das jurisdições que estabelecem o nível e o tipo da complexidade de uma dada intervenção (VERENGUER, 2003).

    A assertiva acima sugere pertinência na reflexão sobre a participação do profissional de Educação Física em equipes multiprofissionais por ocasião da oferta de serviços a pessoas que, no âmbito das necessidades especiais, apresentam deficiência mental. A intervenção profissional da Educação Física orientada para pessoas com necessidades especiais não pode prescindir de uma base cognitiva complexa, necessária para a emissão de respostas profissionais para demandas sociais prementes.

    O estabelecimento de um efetivo diálogo entre profissões distintas é imprescindível para o êxito de uma intervenção com caráter multiprofissional. Para tanto, a articulação entre diversas áreas de intervenção é fundamental para que se possa efetivamente apreender as diversas dimensões (sociais, econômicas, psicológicas, culturais, entre outras) de um determinado setor e, então, promover a adequada intervenção profissional (SILVA; OLIVEIRA; FIGUEIREDO, 2002). Nesse contexto, podem ser identificadas inquietações referentes à falta de clareza presente na determinação do papel do profissional de Educação Física dentro de uma equipe multiprofissional, relacionada ao atendimento de pessoas com deficiência mental. Qual a contribuição específica do profissional de Educação Física dentro de uma equipe multiprofissional e como se dá seu relacionamento com os demais profissionais dessa equipe, são algumas dessas inquietações. É, portanto, questão norteadora deste estudo a delimitação do papel do profissional de Educação Física dentro de uma equipe multidisciplinar, assim como as interações estabelecidas com os integrantes da mesma.

    Diante do quadro exposto o presente estudo objetivou: (a) identificar como profissionais de Educação Física caracterizam sua contribuição específica dentro de uma equipe multidisciplinar; (b) analisar como se dá a interação entre o profissional de Educação Física e os demais profissionais inseridos em instituições consideradas especializadas na oferta de serviços a pessoas que apresentam deficiência mental.


Método

    Participaram do estudo cinco profissionais de Educação Física vinculados a instituições distintas que oferecem serviços a pessoas que apresentam deficiência mental em instituições consideradas especializadas de uma cidade paranaense. A definição dessas características para seleção dos participantes do estudo implicou na opção por uma amostra por tipicidade (MARCONI; LAKATOS, 2002).

    Em contato prévio com as direções das instituições mencionadas, foi possível constatar que das cinco instituições consideradas especializadas na oferta de serviços a alunos que apresentam deficiência mental, duas possuiam apenas um profissional de Educação Física, outras duas possuiam dois profissionais e uma delas possuia cinco profissionais. Para as instituições com mais de um profissional realizou-se um sorteio para seleção daqueles que participariam da pesquisa. Os participantes do estudo foram devidamente informados sobre os objetivos da pesquisa e confirmaram suas participações por intermédio da assinatura de um termo de consentimento esclarecido.

    Após a definição dos participantes da pesquisa, a coleta de dados se deu por intermédio de entrevista individual "não estruturada com abordagem focalizada" (MARCONI E LAKATOS, 2002). O foco das entrevistas realizadas foi a participação do profissional de Educação Física em uma equipe multiprofissional, considerando sua contribuição específica e as interações estabelecidas com os demais profissionais da equipe.

    As entrevistas aconteceram individualmente nas respectivas instituições dos de cada participante. Com o objetivo de analisar e descrever os pontos convergentes e divergentes entre os profissionais entrevistados, suas respostas foram registradas em fitas cassete e posteriormente transcritas. Concluídas as transcrições o material coletado foi analisado, e destacadas as falas de interesse ao objetivo do estudo.


Apresentação dos dados e discussão

    Apresentaremos a seguir (Quadro 1) os dados que caracterizam os participantes quanto a seus respectivos tempos de experiência em Escola Especial e formação profissional, em nível de graduação e especialização. Em relação à formação acadêmica dos participantes encontramos quatro graduados em instituições de ensino superior que oferecem o curso de Educação Física na cidade em que atuam profissionalmente. O quinto participante cursava, na ocasião da coleta de dados, o último semestre do curso de graduação em Educação Física, também em uma instituição de ensino superior da mesma cidade. Três deles possuem o título de especialista em Educação Especial, e os outros dois estavam, no momento da pesquisa, se especializando também em Educação Especial.

    No tocante ao tempo de experiência profissional junto a pessoas com deficiência mental, o profissional menos experiente indicou ter 8 meses de contato co alunos que apresentam deficiência mental e o mais experiente 11 anos. Porém o menos experiente, em relação à intervenção profissional junto a pessoas com necessidades especiais, havia concluído o curso de graduação em Educação Física há 8 anos e sua experiência na Educação Física Adaptada se dava em uma instituição especializada no atendimento de pessoas com síndrome de Down. Os outros profissionais apresentavam 1 ano e 7 meses, 2 anos e 7 anos de atuação profissional em instituições tidas como especializadas.

    Uma observação pertinente aos dados acima expostos diz respeito à possibilidade de inserção precoce no mercado de trabalho. Essa precipitação da intervenção profissional pode estar relacionada à idéia de que a prática profissional é, por si só, um modo adequado de se obter a melhor formação profissional, principalmente na perspectiva de obtenção mais rápida e fácil de conhecimentos práticos (VERENGUER, 2003; SORIANO, 2003). Convém, no entanto, não se perder de vista que na ótica do mercado não raro se observa o barateamento de mão de obra, por intermédio da "contratação" de um graduando, por exemplo, a despeito das implicações desse procedimento no tipo de serviço ofertado. De qualquer modo, a fala abaixo explicita situação de inserção precoce no mercado de trabalho:

P3 - "Trabalho aqui há dois anos... estou cursando o último semestre de Educação Física".

    Essa situação permite a aproximação de considerações feitas por Tani (1996) e Verenguer (2003) sobre o processo de formação do profissional de Educação Física no que diz respeito à preocupação com o preenchimento de espaços no mercado de trabalho. Todavia, esse preenchimento de espaços ocorre desprovido da estruturação de estratégias coerentes com os conhecimentos que são adquiridos (ou pelo menos deveriam ser) durante a graduação. Estratégias essas, porém, que o professor mais experiente não obteve durante sua formação acadêmica, como é possível observar em sua fala:

P5 - "Não tive essa formação quando comecei, não tive a formação para trabalhar em Educação Especial, isso foi uma coisa que fui aprendendo, fui forjando dentro da própria instituição, quando entrei nunca tinha trabalhado com Educação Especial e fui aprendendo e gosto de tá trabalhando com isso" .

    No que se refere aos conteúdos abordados e as estratégias adotadas pelos profissionais de Educação Física em suas intervenções, foi possível visualizar as seguintes situações: a) todos os participantes focalizam objetivos voltados à promoção da saúde envolvendo atividades relacionadas ao desenvolvimento de habilidades básicas e também uma intervenção terapêutica; b) quatro dos participantes desenvolvem, além de habilidades básicas, a iniciação desportiva; c) dois, entre esses quatro, selecionam os alunos que se destacam na iniciação esportiva e os incorporam num programa de treinamento visando competições; d) os outros dois que focalizam a iniciação esportiva, desenvolvem projetos de artes culturais e marciais, sendo que um aborda a capoeira e o outro o karatê. Observamos, portanto, propostas de intervenção de profissionais da Educação Física, inseridos em escolas especiais, que são as mesmas utilizadas em escolas regulares e refletem, por conseguinte, as mesmas contradições:

P1 - "... o ponto de vista é fazer com que eles resgatem os movimentos que devido a dificuldades apresentadas, eles não adquiriram... Por exemplo: arremesso, saltar, correr, o deslocamento, essas coisas básicas. [...] ...mas eu dou também iniciação ao esporte, ao vôlei, basquete, ao chute na bola" .

P2 - "Com os deficientes moderados e severos a gente procura trabalhar toda atividade recreativa, com eles, e atividades esportivas também, todas. Na parte esportiva tem algumas modalidades na escola, mas não se usa a técnica. [...] Não só lúdica, mas as outras atividades também: tem basquete, tem futebol, atletismo; a gente faz também dentro das aulas de Educação Física" .

P3 - "melhorar o desenvolvimento motor, pra ajudar eles a realizar atividades no dia-dia, né? Porque, assim, a gente não tem aquele objetivo específico de formar um atleta. Vamos dizer assim. Ou ensinar regras de jogo, mas sim ensinar eles a se virarem no dia-dia, né?! ...não só na área motora das crianças, no desenvolvimento, mas também, assim, na área cognitiva e afetiva... Então, assim, além de ajudar eles melhorarem sua coordenação ,sua fase de locomoção, no andar, melhorar seu dia-a-dia, acho que não só eu, mas a maioria dos profissionais aqui procuram também ajudar o lado emocional, afetivo, né?! Com bastante carinho" .

P4 - "É difícil fazer um trabalho mais assim de, é. A gente trabalha mais assim, é o muscular. A gente trabalha com alongamentos, é. Nós fazemos recreação com eles, os PCs. Os moderados nos só trabalhamos com iniciação com eles. Porque eles já apresentam distúrbios de conduta e aí a gente não coloca o jogo em si. Sempre buscando novas estratégias" .

P5 - "Trabalho mais desenvolvimento geral. A questão do esporte a gente consegue entrar mais na parte pré-desportiva, começa entrar algumas brincadeiras, alguns jogos pré-desportivos, ... mas a maior parte é o desenvolvimento mesmo. [...] ... mudou a questão do esporte dentro da Educação Física. Vai perder, não vai mais ser o carro chefe, vai entrar mais na música, na parte cultural para que possa aproveitar mais" .

    As falas dos participantes refletem, de certo modo, a dificuldade de se relacionar dimensões acadêmicas e profissionais em direção à emissão de respostas profissionais compatíveis com as demandas apresentadas pelas pessoas que usufruem serviços ofertados pela área de atuação profissional denominada Educação Física. Neste sentido, os participantes com menor tempo de experiência em instituições consideradas especializadas no atendimento de pessoas com necessidades especiais mencionaram recorrer aos professores mais experientes, quando vistos em situações com as quais não sabem lidar, conforme indicado na fala abaixo:

P3 - "Aí eles já procuram saber com as pessoas mais velhas,... que são mais experientes: - Como é que eu devo trabalhar?...Como é tal aluno? Como é que ele se comporta?" .

    Considerando a diferença no tempo de experiência profissional, entre o menos e o mais experiente dos participantes da pesquisa, pouco mais de 10 anos, é interessante pensar em um relacionamento profissional que avance do diálogo entre profissionais da Educação Física para interações destes com os demais integrantes da equipe multiprofissional. Essa recomendável interação com profissionais de outras áreas, entretanto, não pode conduzir a uma desatenção às delimitações da área de intervenção definida pela Educação Física e, muito menos, levar à confusão de competências com outras áreas, como, por exemplo, a Fisioterapia (GIMENEZ, 2001), conforme exposto abaixo:

P1 - "... o ponto de vista é fazer com que eles resgatem os movimentos que devido a dificuldades apresentadas, eles não adquiriram..."

P2 - "Eu trabalho junto com o fisioterapeuta na piscina. É, trabalho não! Nós vamos começar a trabalhar juntos. Mas sempre a gente tá trocando idéias pra fazer um bom trabalho."

P3 - "... a criança não consegue nem segurar um copo pra tomar água, vamos realizar atividades, brincadeiras que auxiliem ela..."

    A confusão de competências profissionais dentro de uma equipe multiprofissional reflete uma fragilidade na delimitação da contribuição específica de cada áreas de intervenção profissional. Essa confusão pode acontecer também por parte do profissional de Educação Física em relação a outras áreas, ocasionando a sustentação de sua intervenção em aspectos que fogem a sua especificidade, conforme sugerido nas falas a seguir:

P3 - "Então, assim,.. .a maioria dos profissionais aqui procuram também ajudar o lado emocional, afetivo, né?! Com bastante carinho."

P4 - "Ahhh... da saúde deles, da higiene deles, todo esse lado social com os alunos a gente faz também."

    Essas contradições em relação às delimitações da intervenção específica do profissional da Educação Física podem ocasionar tanto a sobreposição de ações, quanto um distanciamento abismal entre os profissionais de uma equipe multiprofissional. Isso pode ocorrer devido: a) as outras profissões existentes dentro do ambiente da instituição enfrentarem o mesmo problema da Educação Física - falta de corpo específico de conhecimentos que identifiquem a profissão; b) inexistência de um trabalho caracterizado em equipe - mesmo se tratando de uma equipe multiprofissional - com a conseqüente visão fragmentada de uma determinada questão; c) a Educação Física se apresentar numa situação de subserviência, atuando conforme indicações ou proposições de outras profissões, mais influentes e que, via de regra, gozam de inquestionável reconhecimento social.

    Se de um lado é possível perceber elementos de uma perspectiva médica no atendimento ofertado por Escolas Especiais a pessoas com necessidades especais, de outro lado os profissionais da Educação Física também o fazem em suas intervenções. Esse fato pode ocorrer tanto em função do processo histórico de constituição da área quanto pela intenção de se ajustar às características institucionais. O esporte é outro caminho seguido pelos profissionais de Educação Física na elaboração de suas intervenções, mas, mais uma vez, nos mesmos moldes do que prevalece em relação à oferta de serviços fora de instituições tidas como especializadas no atendimento de pessoas com necessidades especiais. É o que podemos acompanhar nas falas abaixo:

P4 - "A gente faz uma seleção de alunos, geralmente no começo do ano,... e aí a gente encaminha para o treinamento."

P5 - "... alguns jogos pré-desportivos, para futuramente aqueles uns que tem potencialidade, potencial, entrar na questão esportiva."

    No que tange ao relacionamento entre os profissionais que atuam nas instituições especializadas e compõem suas equipes multiprofissionais os participantes afirmaram existir, além dos profissionais da Educação Física e da Pedagogia, profissionais que estão mais intimamente ligados á área médica (profissionais da Fisioterapia, da Fonoaudiologia, da Psicologia, da Terapia Ocupacional e do Serviço Social). Todavia esse relacionamento pode estar mais apoiado em desencontros do que em encontros com vistas à realização de uma intervenção profissional em equipe. Esses (des)encontros apontam uma ambigüidade no que se refere à orientação profissional definida pela instituição especializada, flutuando entre uma perspectiva mais pedagógica ou mais clínica, como nos indica um dos participantes da pesquisa:

P4 - "Todos os técnicos: fisioterapeuta, fonoaudióloga, psicóloga, terapeuta ocupacional e assistente social têm uma reunião. Acho que uma vez por semana, não sei como funciona aqui. Mas o professor de Educação Física não participa dessa reunião."

P4 - "Não sei. Eu acho que, eu não sei como que é a reunião, se a reunião é só sobre, é, o atendimento que os professores, que os técnicos - que caso a gente fala, né! - os técnicos fazem com o aluno ou se é uma coisa mais pedagógica com a direção. Eu não sei, assim, qual é o lado que eles trabalham, se é uma, um lado pedagógico ou se é o lado do atendimento com os alunos."

    Por outro lado, nas outras instituições, segundo os participantes, os profissionais da Educação Física participam das reuniões da equipe multiprofissional:

P1 - "Sempre se conversa entre os profissionais para ver como vai nas outras áreas, e cada semestre é feito um relatório das atividades, como foi, como esse aluno evoluiu. Sempre estamos conversando, tem grupo de estudo na sexta-feira..."

P2 - "Tem todas as quintas-feiras, nós fazemos, é, um encontro, né?! E uma vez por mês, nós nos reunimos todos os professores. Todos participam não só os professores, mas também os técnicos."

P3 - "Todo final de mês a gente tem que entregar um relatório de cada criança. Todo mundo lê. O seu aluno de cada sala todo mundo lê. Tanto que nós somos os que temos mais trabalho, temos que fazer o relatório de um por um aqui da escola. Todo mundo é meu aluno. Mas é bom, a gente consegue comparar o desenvolvimento de cada criança. Ver o que precisa melhorar, o que não precisa."

    Encontramos ainda uma terceira situação na qual o participante considera que o encontro entre os profissionais da equipe deve acontecer somente quando necessário, para que uma área não interfira na outra:

P5 - "... cada um tem seu departamento, atende nos seus horários, sem interferência uns com os outros, mas quando precisa tem as trocas de figurinha... na média é bom o relacionamento, é profissional."

    As falas apresentadas acima permitem percebermos que a presença de distintos profissionais pertencentes a uma equipe multiprofissional, de uma instituição que atende pessoas com deficiência mental, não garante a realização de uma intervenção assentada na reunião de suas competências específicas. Nas instituições que os participantes mencionaram haver uma participação ativa da Educação Física na equipe multiprofissional, nota-se uma valorização de sua contribuição. Essa valorização pode ser atribuída à idéia sensocomunizada dos benefícios oriundos da prática regular de atividades físicas. Mas vamos acompanhar com atenção as falas abaixo:

P1 - "As outras disciplinas tratam de igual para igual a Educação Física. Eles valorizam muito a atividade física, sempre estão conversando, mostram material alternativo para trabalhar o equilíbrio, deslocamento, bolas coloridas, um trabalho bem profissional mesmo, respeitando todo mundo."

P2 - "A gente sempre troca uns casos. Tem alunos que passam pelo setor de Educação Física, que são atendidos pela T.O., e pela Físio, aí é passado orientações como: - Esse aluno tá com tal problema, tem que maneirar, ele tá impossibilitado de fazer Educação Física por determinado período, precisa de uma órtese para fazer determinado exercício. Então, essas orientações a gente sempre recebe."

P3 - "Assim, Fono, Psico, Fisioterapia e Educação Física, aqui a gente anda bem juntos. A fisioterapeuta, as vezes chega e fala: - Ela está precisando se posicionar melhor. Procura trabalhar alguma coisa assim na EF. A fono, mesmo, fala: - Ele está gaguejando muito vê alguma atividade psicomotora, lúdica, que tenha música pra ele desenvolver um pouquinho a voz, né? E a gente já viu resultado nisso. Tem criança que nem fala na sala de aula chega na EF e ele canta, então, é uma diferença e tanto. Então, é muito bom essas áreas estarem trabalhando juntas."Daí, quando a professora de sala está com alguma dificuldade na escrita, ou na fala ela: - Procura vê isso numa de suas aulas pra você tá trabalhando o espaço, porque tá muito difícil. A gente tenta elaborar uma aula dentro daquilo."

    As falas apresentadas acima sugerem uma disponibilidade dos profissionais da Educação Física para auxiliar os outros profissionais de acordo com as dificuldades encontradas no decorrer de suas intervenções específicas. Contraditoriamente, essa valorização da intervenção do profissional da Educação Física se dá mais em função de se poder utiliza-la com meio para alcançar objetivos de outras áreas do que em função de sua contribuição específica nas ações da equipe multiprofissional. Aliada a esse olhar das outras áreas sobre a Educação Física, encontramos a aceitação dos próprios profissionais da Educação Física dessa situação. Essa subserviência pode estar relacionada tanto à fragilidade da área no que diz respeito à delimitação de suas competências profissionais, quanto a uma estratégia de sobrevivência dentro de uma equipe multiprofissional com forte pendor clínico.

    Do ponto de vista da contribuição específica do profissional da Educação Física no contexto de uma equipe multiprofissional, inserida em instituições consideradas especializadas na oferta de serviços para pessoas com deficiência mental, destacamos como falas de interesse:

P1 - "Eu acredito que a Educação Física é importante na parte de desenvolver a criança mesmo, nos aspectos motores, e proporcionar para eles uma vida mais ativa de lazer, porque o professor de Educação Física vai fazer uma ponte para que a criança participe nos parques, nos ambientes fora da escola e eles necessitam da parte motora, da coordenação. Vamos supor: se ele tiver no colégio, para ele acompanhar outras crianças, ele necessita de algumas habilidades básicas, isso é, o professor de Educação Física que vai proporcionar... ele vai ganhar seu próprio respeito perante o grupo. Acho que isso é a função do profissional de Educação Física. Também trabalhar o corpo, deixar em condições dele próprio se aceitar no meio."

P2 - "É muito importante a Educação Física, porque nós estamos lhe dando com a saúde das pessoas e muitas vezes o outro profissional não tem a experiência que nós temos de 1º socorros, que a gente debate muito... É, acho que, olha, o desenvolvimento dos alunos... se eles não forem trabalhados, é, não tem, não tem como eles. Nós temos alunos lá que começaram a ser trabalhados com a Educação Física e eles estão andando bem pra caramba e outros que não, não andavam. Hoje estão caminhando lentamente. Desenvolvimento motor e, tanto no físico como o psicológico também. O professor de Educação Física auxilia muito nesse aspecto, tanto nos eventos que participa, sempre quem cria é o professor de Educação Física, sempre quem tá na frente é o professor de Educação Física."

P3 - "Melhorar o seu desenvolvimento motor, pra ajudar eles a realizar atividades no dia-dia. Né? Porque, assim, a gente não tem aquele objetivo específico de formar um atleta, vamos dizer assim, ou ensinar regras de jogo, mas sim ensinar eles a se virarem no dia-dia, né?!"

P4 - "Ah... nummmmm, não sei. Não sei. Uma parte exclusiva da Educação Física? A formação do professor. Só... Só, não, né?! Porque a gente tem uma formação, né? A gente estuda 4, 5, 6 anos aí, pra ter uma formação. Então, o que eu acho que diferencia todo esse lado, também. A formação. Cada um tem o seu... o professor de Educação Física também."

P5 - "O professor é importante no desenvolvimento dele. É uma coisa básica que os próprios alunos necessitam, quando o aluno sai da escola para fazer um passeio ou participar de alguns jogos, o aluno sempre procura alguém que tem mais afinidade, conhece mais as suas qualidades, pra tá conversando, pra tá ficando perto, socialização, o vinculo que ela cria é muito grande, qualquer dificuldade que ela tem, ela vem correndo, procura o apoio no professor."

    O desenvolvimento humano em sentido amplo, a promoção da saúde e em nível mais específico desenvolvimento motor são apontados como aspectos da intervenção do profissional da Educação Física que caracterizam sua contribuição específica em contextos multiprofissionais. As perspectivas acima sinalizadas podem ser atribuídas tanto ao processo de formação profissional de cada um dos participantes, assim como a suas experiências mais particulares. Merece destaque o fato de que nessas falas não se percebe alusão à subserviente relação com os demais profissionais da equipe. Fato este que, contraditoriamente, se observa no cotidiano da intervenção promovida pela equipe multiprofissional.


Considerações finais

    O presente estudo objetivou identificar como profissionais de Educação Física caracterizam sua contribuição específica dentro de uma equipe multidisciplinar, além de analisar como se dá a interação entre o profissional de Educação Física e os demais profissionais inseridos em instituições consideradas especializadas na oferta de serviços a pessoas que apresentam deficiência mental. Participaram do estudo profissionais de Educação Física vinculados a instituições que oferecem serviços a pessoas que apresentam deficiência mental, com a coleta de dados tendo sido realizada por intermédio de entrevista não estruturada.

    As falas apresentadas pelos participantes da pesquisa permitem que se façam considerações de interesse à participação de profissionais de Educação Física em equipes multiprofissionais. A despeito da dissonância presente nas opiniões expressas sobre suas contribuições específicas em uma equipe multiprofissional em relação a suas intervenções cotidianas, pode-se perceber a existência de alguns diálogos entre os integrantes da equipe. Mas as interações observadas ainda prescindem de um caráter mais sistemático que contribua de modo efetivo para o aprimoramento dos serviços ofertados pela equipe multiprofissional, como, por exemplo, a realização de encontros regulares para discussão sobre a intervenção promovida e os resultados alcançados.

    Importa destacar à luz dos dados obtidos junto aos participantes da pesquisa as implicações do processo de formação profissional, seja ela obtida em nível de graduação ou após. A interação entre distintas áreas de intervenção profissional passa pela definição de suas funções específicas.

    Essa definição está atrelada aos conteúdos veiculados ao longo da formação profissional e às habilidades e competências desenvolvidas ao longo dessa formação. Deste modo, elementos indicadores da especificidade da intervenção do profissional de Educação Física - expertise, autonomia e credencialismo - não podem ser negligenciados. Além disso, o aspecto relacional inerente à equipe multiprofissional impõe que a habilidade e a disponibilidade para o diálogo não sejam ignoradas no decorrer do processo de formação profissional daqueles que a constituirão.

    O profissional da Educação Física pode contribuir no processo de desenvolvimento de uma pessoa que apresente um determinado tipo de deficiência, à medida que estruture um ambiente que proporcione vivências motoras capazes de incrementar sua habilidade para solucionar as tarefas apresentadas pelo ambiente físico-social no qual está inserida. Para tanto é necessário focalizar o movimento corporal e não a deficiência da pessoa, quando se propõe intervir junto a pessoas com necessidades especiais. Não compete ao profissional da Educação Física reverter alterações morfológico-funcionais constitutivas de uma pessoa. Entretanto, proporcionar-lhe condições de movimentar-se para interagir com seu ambiente físico-social de modo cada vez mais satisfatório às suas necessidades - levando em conta o patrimônio cultural do movimento corporal humano - é tarefa pertinente à área de intervenção profissional denominada Educação Física. Essa perspectiva não pode se perder no contexto da intervenção profissional em uma equipe multiprofissional.


Referências

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  • ARAÚJO, P.F. A Educação Física para pessoas portadoras de deficiência nas instituições especializadas de Campinas. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 1999.

  • BOSI, M.L.M. Profissionalização e conhecimento: a nutrição em questão. São Paulo: Hucitec, 1996.

  • CARMO, A.A. Inclusão escolar e a Educação Física: que movimentos são estes? Integração, Ano 14, p.6-13, 2002, Edição Especial.

  • GIMENEZ, R. Trabalho multidisciplinar com portadores de deficiência mental: o papel do profissional de Educação Física. Revista de Educação Física da Cidade de São Paulo, v.1, n.1, p 51-70, 2001.

  • MARCONI, M.A.; LAKATOS, E.M. Técnicas de Pesquisa. 5.ed. São Paulo: Editora Atlas, 2002.

  • MINELLI, D.S. Profissional de educação física e a interveção em equipes multidisciplinares. Monografia (TCC). 2005. Centro de Educação Física e Desporto, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, PR.

  • PEDRINELLI, V.J.; VERENGUER, R.C.G. Educação Física Adaptada: introdução ao universo das possibilidades. In: GORGATTI, M.G.; COSTA, R.F. Atividade física adaptada: qualidade de vida para pessoas com necessidades especiais. Barueri, SP: Manole, 2005, p. 1-27.

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revista digital · Año 11 · N° 103 | Buenos Aires, Diciembre 2006  
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