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O presente trabalho consiste em um recorte da Monografia de Conclusão de Curso
apresentada pelo autor, com o título "A construção da identidade nacional a partir
do Futebol: uma revisão de literatura", como requisito parcial à conclusão do curso
Licenciatura em Educação Física pela Universidade Federal do Paraná no ano de
2005, sob orientação do professor Wanderley Marchi Jr.

Introdução

    Compreender como inicia um processo de construção de identidade em determinado grupo social é uma tarefa complexa, que exige cuidados e atenções, para que o pesquisador, a partir das primeiras impressões, não se deixe levar por conclusões precipitadas e substanciais.

    Para Edgar de Decca "a identidade de um grupo forma-se normalmente por sinais externos e por um conjunto de símbolos ou valores a partir dos quais se opera uma identificação" (2002, p. 08). É possível afirmar que nem todos esses valores ou símbolos sejam positivos e que muitos deles carreguem traços reveladores de inferioridades e incapacidades do grupo, sendo utilizados para rotular e descriminar esses indivíduos.

    Sob um outro prisma perspectivo, o antropólogo Roberto DaMatta (1986) afirma que

a identidade se constrói duplamente. Por meio dos dados quantitativos, onde somos sempre uma coletividade que deixa a desejar; e por meio de dados sensíveis e qualitativos, onde podemos ver a nós mesmos como algo que vale a pena (1986, p.19).

    Para este autor, algumas peculiaridades culturais devem se consideradas quando se investiga formas de identidades, por possuírem um caráter importantíssimo na definição de uma possível brasilidade: a comida, o carnaval, a música e também o futebol. Buscando compreender o processo de identificação do brasileiro com o futebol, DaMatta (1982) explica que

o futebol é, na sociedade brasileira, uma fonte de individualização e possibilidade de expressão individual, muito mais do que um instrumento de coletivização ao nível pessoal ou das massas. Realmente, é pelo futebol praticado nas grandes cidades brasileiras, em clubes que nada têm de recipientes de ideologias sociais, que o povo brasileiro pode sentir individualizado e personalizado (DAMATTA, 1982, p.27).

    Dessa forma, acreditamos que o futebol não seja tão somente um momento de simples expressão emotiva ou catarse dos torcedores, mas algo que é constitutivo do imaginário social e que apresenta a possibilidade de expressão e identificação da população que aqui vive, por serem considerados representantes da melhor forma de prática do esporte inglês, assim como acontece, por exemplo, com o carnaval.

O contexto da Copa de 1938

    Pouco tempo após a chegada do futebol ao Brasil, podiam-se ver, principalmente no Rio de Janeiro, muitos clubes praticando e desenvolvendo o futebol. A possibilidade de se jogar o esporte, entretanto, era restrita, preferencialmente os associados de clubes de origem européia eram os que dispunham dos materiais e do local próprio para a disputa de um match¹. Em pouco tempo o futebol popularizou-se, espalhando pelos subúrbios das grandes cidades, possibilitado pela criação de diversos clubes populares.

    Esse é um momento que marca, além do aumento da prática pelas classes populares a inserção do negro no futebol. Este fato gerou inúmeras modificações, seja pela criação de ligas independentes, mas, principalmente por ter sido período marcado pela grande discussão entre a prática amadora e a necessidade de profissionalização do futebol em nosso país. A profissionalização refletia os interesses de muitos trabalhadores que não dispunham de tempo para treinar e que começavam a receber 'salários' e vantagens para apenas jogar futebol.

    Após as fracas participações na Copa de 1930 e 1934, nas quais participaram apenas jogadores brancos e vinculados aos grandes clubes de origem européia, o mundial de 38 podia ser a oportunidade do futebol brasileiro mostrar seu valor perante os europeus e, conseqüentemente, ao mundo.

    A década de 30 foi um período de intensa movimentação e mudanças de ordem política, o Estado no buscou atribuir ao esporte a função de catalisador da formação um novo Brasil, dessa maneira, utilizou-se do esporte, mas principalmente do futebol, para divulgar e implementar sua política nacionalista. O momento propício para esta investida deveria ser um evento internacional, espaço em que o brasileiro pudesse desenvolver suas melhores qualidades na tentativa de derrotar seus adversários, este, seria a Copa do Mundo de 1938. Nas palavras de Pereira (2000), notavam-se as novas demandas despendidas ao futebol através do

[...] irrestrito apoio que o jogo passava a receber do governo de Getúlio Vargas durante a Copa do Mundo - quando a delegação tinha como madrinha a própria filha do presidente, Alzira Vargas. Cristalizador dos ideais de harmonia social e furor nacionalista que eram propagandeados pelo seu governo após a implantação do Estado Novo, o futebol servia como um grande aliado na disseminação do projeto político que desejava implementar - intensificando e dando um sentido mais claro ao interesse que, desde seus primeiros anos, as autoridades governamentais manifestavam em relação ao jogo. (PEREIRA, 2000, p. 335).

    A relação do brasileiro com o esporte foi avultada de inúmeras formas, considerando o envolvimento e o interesse da população brasileira pelo esporte inglês, nesse momento, era possível afirmar que o vínculo da sociedade brasileira com o futebol chegava a um nível nunca antes imaginado. "A Copa do Mundo, disputada na França, avultou a paixão por este esporte, assim como foi capaz de suscitar inúmeras questões acerca da própria concepção de nação. [...] Era como se os destinos do Brasil estivessem sendo decididos entre um chute e outro". (NEGREIROS, 2003, p. 133).

    A essa disputa foi transferida uma grande parcela da responsabilidade sobre os destinos e rumos do país. O sucesso de nossa seleção em campos franceses demonstraria todo o potencial brasileiro, por isso, era necessário que toda a população estivesse envolvida neste evento, mesmo que fosse somente incentivando e torcendo pelos jogadores brasileiros.

    Nas palavras de Negreiros (1997) é possível perceber todo o clima de ufanismo que havia sido criado sobre a participação brasileiro na Copa da França:

A aproximação do início da Copa do Mundo de 1938, fazia com que cada setor da sociedade brasileira, articulados pela CBD e pela imprensa, envolvia-se cada vez mais com o futebol, como se toda a nação estivesse naquele momento representada. Da madrinha da seleção Alzira Vargas, passando pelo embaixador brasileiro na França, por todas as autoridades públicas que doaram dinheiro para a delegação, além dos empresários, das atividades econômicas privadas, nacionais ou estrangeiras, chegando ao mais simples torcedor. A nação, unida, mostrava-se de prontidão, atenta para enfrentar os inimigos que viessem pela frente; a unidade nacional construída a partir do futebol, revelava a força do Brasil, que manifestava-se apontando a total falta de temor diante de inimigos tão fortes. E essa unidade nacional havia sido forjada de tal maneira, que foi capaz de não deixar nenhum brasileiro de fora, mesmo aqueles que possuíam pouco ou nenhum interesse pelo futebol, esporte tão criticado por setores da imprensa e por teóricos da Educação Física, que o associavam à deseducação popular, à violência e á desordem (NEGREIROS, 1997, p. 219).

    Sobre o torcedor, apesar dos esforços governamentais, públicos e privados, recaia determinada parcela de responsabilidade sobre o sucesso nacional. A mobilização dos torcedores era feita através de variadas estratégias, como as campanhas para arrecadação de fundos para o selecionado nacional, visando proporcionar melhores condições para os atletas que disputariam o mundial. Aliás, esses atletas, para alguns jornalistas, estudiosos e entusiastas, apresentavam, como veremos, uma mestiçagem que, apesar das discussões, provocava àquela Copa uma expectativa diferenciada.

Um team "genuinamente" brasileiro

    Como já foi citado, a década de 30 pode ser caracterizada como um momento de variadas transformações em diversos âmbitos, como por exemplo, o meio político, acadêmico e, inclusive, o esportivo. A efervescência futebolística nas décadas anteriores, suscitou um debate em torno de uma suposta 'europeização' do brasileiro, movimento este que colocava-se contrário à prática do futebol em campos brasileiros.

    No cerne dessa discussão, as publicações de um sociólogo brasileiro ganham destaque, defendendo uma mestiçagem social que poderia ser perfeitamente aplicada ao futebol, Gilberto Freyre apontava a possibilidade da afirmação de uma suposta brasilidade futebolística com a inserção do negro e do mestiço no futebol, fato este corroborado por Pereira (2000):

A crença irrestrita que se formava sobre o valor da mistura racial na constituição de um futebol autenticamente nacional de grande valor garantia, assim, o orgulho e a confiança que torcedores de origens diversas passavam a demonstrar em relação ao selecionado (PEREIRA, 2000, p. 338).

    Dessa maneira, o exaltado 'estilo brasileiro' estaria presente principalmente nos pés de dois jogadores, de origem humilde, que se tornariam os expoentes de uma nova maneira de se praticar o football: Domingos da Guia e Leônidas da Silva. Revelados por pequenos clubes, e adentrando aos anteriormente aristocráticos grandes clubes, Leônidas e Domingos eram as grandes esperanças de sucesso dos torcedores, cronistas e literários. Esta suposta nova maneira de se praticar o futebol seria contraposta à forma européia de se jogar, apresentando esta, de maneira geral, linha exatas, rigor tático, ausência de dribles e 'floreios' e principalmente, pouco improviso.

    Para Freyre, o futebol seria apenas um dos expoentes da demonstração de que a mestiçagem não deveria ser rejeitada, não sendo ela responsável por diversos fatores negativos que a essa mistura étnica era apontada. Este sociólogo acreditava que um bom desempenho do selecionado brasileiro na França poderia sustentar diversas modificações dessa maneira de enfrentar e pensar a diversidade cultural existente em nosso país. E nada melhor do que um time que espelhasse a diversidade da realidade cultural e étnica brasileira.

    Futuramente, ao prefaciar a obra O Negro no Futebol Brasileiro, de autoria de Mário Filho (1964), Freyre apresentaria o seu entendimento no tange as questões relativas à apropriação do futebol pelo brasileiro, contrapondo-se a uma perda da identidade quando da prática de um esporte vindo do continente europeu, exaltando a forma de jogar desses dois atletas:

O desenvolvimento do futebol, não num esporte igual aos outros, mas numa verdadeira instituição brasileira, tornou possível a sublimação de vários daqueles elementos irracionais de nossa formação social e de cultura. (...) um pouco de samba, um pouco de molecagem baiana e até um pouco de capoeiragem pernambucana ou malandragem carioca. Com esses resíduos é que o futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado original britânico para tornar-se a dança cheia de surpresas irracionais e de variações que é. A dança dançada baianamente por um Leônidas; e por um Domingos, com uma impassibilidade que talvez acuse sugestões ou influências ameríndias sobre sua personalidade ou sua formação. Mas, de qualquer modo, dança (FREYRE, 1964, s/p).

    Para Freyre (1964), o brasileiro, representado por Domingos da Guia e Leônidas da Silva, havia transformado o futebol em uma dança. Dança, esta, somente praticada por ele, o que elevaria o nosso futebol ao ápice mundial. Uma prática permeada por elementos culturais que distinguiam o nosso povo, tornando-se uma rara expressão de nacionalidade. Se não fôssemos os melhores em outras instâncias como no desenvolvimento econômico e social, na indústria, ou talvez na política, o esporte poderia proporcionar uma mudança no imaginário social da população.

    Entretanto, a outros fatores podem ser atribuídos a identificação da população: segundo alguns especialistas no assunto, nunca antes na disputa de um torneio mundial a seleção havia levado jogadores que representassem as características sociais do povo brasileiro.

    "Creio que uma das condições para de vitória dos brasileiros nos encontros europeus, prende-se ao fato de termos a coragem de mandar à Europa desta vez um team francamente afro-brasileiro" (FREYRE apud NEGREIROS, p. 223). Além da identificação, o sociólogo Gilberto Freyre atrelava a possibilidade de sucesso à presença do negro.

    Apesar de todos os atletas que compunham a seleção atuarem apenas em São Paulo e no Rio de Janeiro, aquela seleção, para alguns, representaria verdadeiramente o futebol brasileiro e, principalmente, a população brasileira. O Brasil estaria representado não apenas na inscrição de nossa seleção, mas em uma representação sócio-cultural como nunca antes foi vista. Essas expressões garantiram uma torcida incondicional de muitos, independente dos resultados obtidos nos gramados franceses.

Conclusões

    Buscamos com este trabalho discutir e levantar questões importantes que até hoje estão presentes no meio esportivo, mas principalmente no debate acadêmico. Concordamos com Soares quando afirma que

Não é o papel das ciências sociais afirmar identidades nacionais, regionais, clubísticas ou outras de qualquer natureza, pois, seu papel é interpretar, analisar e explicitar os mecanismos dos processos de construção de identidades (SOARES, 2003, p. 156).

    A Copa do Mundo de 1938, como procuramos demonstrar, tornou-se um dos momentos-chave na compreensão da construção da identidade brasileira a partir do futebol. Pela primeira vez, foi levado a este torneio internacional um plantel que contava com a presença de jogadores negros, o que, para Gilberto Freyre, seria o nosso diferencial.

    A boa campanha brasileira, somada à conquista da artilharia por Leônidas da Silva, possibilitou a afirmação e constituição de variados discursos e teorias levantadas em torno do futebol e da mestiçagem. Todavia, para muitos a derrota brasileira nas semifinais e a conseqüente não conquista do título poderiam servir como forte argumento contrários a esses pressupostos. São vários as falhas e contestações que surgiram após o evento. Uma das possibilidades de explicação com grande repercussão para a derrota, pode ser encontrada no estilo próprio 'estilo brasileiro', para Magalhães,

[...]times brasileiros só ganham no Brasil, onde os juízes impedem o tranco e a "torcida" não permite que os "meninos" sejam machucados [...]. E depois, ainda, por patriotada, vivemos a dizer que somos os "melhores do mundo"! O que os brasileiros precisam é aprender a jogar o "football association", praticado por todo o mundo, e desistir desse joguinho para moças que nós inventamos aqui [...]. (MAGALHÃES apud SOARES, 2003, p. 139, aspas do original).

    Caracterizado por ser um jogo de passes curtos e rápidos, dribles e ginga, priorizando o estilo a técnica individual em detrimento de uma formação coletiva, não estava claro para todos que a forma com que o brasileiro praticava o futebol era a mais apropriada, frente ao jogo previsível jogo europeu que obtinha resultados.

    Na busca da construção da identidade do brasileiro com futebol, um bom caminho já havia sido trilhado. A Copa do Mundo de 1938 revelou que o futebol brasileiro tinha condições de se firmar no cenário internacional. Os primeiros laços entre identidade nacional, futebol e a população haviam sido estreitados e o esporte se fortalecia cada vez como o principal no Brasil.

    Percebe-se que no futebol foi projetado muitos dos desejos e angústias que a sociedade buscava para a nação, daí clareia-se as acusações de terem favorecidos os europeus em atitudes que extrapolavam as quatro linhas do campo. Seguindo esta lógica de raciocínio, sendo considerada uma nação com pouca influência, e de certa forma subdesenvolvida, não tínhamos prestígio suficiente para conseguir vantagens, trocas e facilidades, e esta situação, conforme sugere o imaginário social à época, não se restringia apenas ao campo esportivo.

    A próxima Copa do Mundo, doze anos após 1938, construiria uma nova paisagem na formação da identidade do brasileiro com o futebol, porém, esse é um momento que fica para uma outra história.

Notas:

1. Era comum no início do século XX a utilização de termos ingleses ao se referir ao futebol.

Referências

• DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil. 2ª. Edição. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

• _____. Esporte na Sociedade: um ensaio sobre o futebol brasileiro. In: DAMATTA, R. (org.). Universo do Futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1982.

• DECCA, Edgar S. de. Cidadão, mostre-me a identidade. In: Caderno Cedes. V.22, n.58. Campinas: dezembro 2002.

• FREYRE, Gilberto. Prefácio da 1ª. edição. In: RODRIGUES FILHO, M. O Negro no Futebol Brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.

• NEGREIROS, Plínio José L. de C. Futebol e Identidade Nacional: o caso da Copa de 1938. In: Coletânea do V Encontro de História do Esporte, Lazer e Educação Física. Ijuí: Editora da UNIJUÍ, 1997.

• PEREIRA, Leonardo A. de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro - 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

• _____. Futebol nos anos 1930 e 1940: construindo a identidade nacional. In: História: questões e debates. N. 39. Curitiba: Editora UFPR, 2003. p. 121-151.

• SOARES, Antonio Jorge. Futebol: a construção histórica do estilo nacional. In: Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v.25, n. 1, p. 129-143, 2003.

• _____. Futebol Brasileiro e Sociedade: a interpretação culturalista de Gilberto Freyre. In: Pablo Alabarces. (Org.). Futbologías: fútbol, identidade y violencia en América Latina. Buenos Aires, 2003, v. 1, p. 145-162.

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