Picadeiro, palco, escola: A evolução do circo na Europa e no Brasil |
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Especialista em lazer pela UFMG/CELAR (Brasil) |
Cláudia Heringer Henriques clauheringer@yahoo.com.br |
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http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 101 - Octubre de 2006 |
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Introdução
Durante muitos anos a arte circense encanta o mundo com seus espetáculos que exibem habilidades diversas de seus artistas, como o contorcionismo, equilibrismo, ilusionismo dentre outros. Para compreender o fenômeno "circo" do século XXI, proponho, em um primeiro momento, fazer uma breve revisão histórica compreendendo suas diversas expressões como manifestação cultural. A seguir, procuro compreender o surgimento das escolas de circo no Brasil e seus significados no âmbito do lazer. Proponho entender, nesse sentido, a importância que locais como esse tem para vivências de lazer na cidade.
Um olhar histórico sobre o Circo
Do picadeiro ao palcoO cavaleiro inglês Philip Astley, considerado por alguns historiadores circenses como o pai do circo "moderno"1, montou a primeira estrutura de circo com picadeiro, espaço com tablado circular delimitado por lonas cercado por arquibancadas proporcionando a visão dos espetáculos e do público ao redor. Astley foi inovador quando começou a incorporar os saltimbancos, acrobatas, cavaleiros e palhaços em uma só apresentação tornando-se esta a base do circo moderno. Em 1770 inicia a cobrança de ingressos do público para assistir a esses grandes espetáculos.
Após a estréia desse tipo de espetáculo Charles Hughes também cavaleiro criou uma das primeiras companhias de espetáculos do mundo em1780 que se chamou Royal Circus, e pela primeira vez esse tipo de espetáculo e espaço aparecia com o nome de "circo". O sucesso de sua companhia foi responsável por esse nome ficar popular e ser conhecido até os dias de hoje2.
Personagens que marcaram a história do circo são conhecidos como nômades, viajantes como os ciganos e os saltimbancos, artistas que divertiam o público em feiras e praças públicas durante a idade média em apresentações realizadas de cidade em cidade. Os nômades eram apontados como "povos vagabundos" que deixavam sinais de destruição e abandono por onde passavam, instaurando linhas de fuga, detona desejos, fragmentação de identidades e oferecendo caminhos e possibilidades imprevisíveis e perigosas3.
O circo do século XVIII passa a ser considerado um espaço propicio a bagunça onde ocorria a ruptura de comportamentos civilizados. Instalava-se também na sociedade o desejo de controlar o divertimento do povo no tempo fora do trabalho4. Em 1727 o circo já era considerado uma atividade nacional gerando questões sobre como proceder com famílias ciganas que apresentavam espetáculos considerados imorais, comédias e óperas, nas cercanias de cidade. O movimento nômade não representou apenas distúrbios sociais, foi um movimento que despertou diversas sensações, gerou fascínio, mudança de cotidiano, deslumbramento, sensação explosiva e alegre, incontrolável e prazerosa transformação da cidade por onde passavam5.
No final do século XIX e meados do século XX em toda a Europa o cavalo ocupava um lugar central nas apresentações circenses, sendo chamados então "circos de cavalinhos", e em sua maioria os números hípicos é que davam valia à apresentação da companhia circense.
Outra atração dos circos no século XIX eram as feras, animais considerados não amestrados ou domados como os leões, ursos e serpentes utilizadas no circo como um atrativo para o público, e na maioria das vezes, apenas sua exibição já era suficiente para um público curioso que nunca tivera oportunidade de ver tais animais6.
A presença de mágicos ilusionistas e malabaristas também marcava os números circenses da época. Os mágicos tinham como objetivo iludir o público através de truques que criassem uma "noite agradável e cheia de emoções". Os números de ilusionismo geravam a tensão entre a dialética origem e fim, causa e efeito, vida e morte como no número em que a ajudante é separada em pedaços o corpo vivo e despedaçado.
O corpo acrobata impressiona os espectadores através da demonstração de coragem e no desafio da gravidade e da morte, da inversão da ordem das coisas como andar com as mãos, lançar-se no espaço, contorcer-se, produzir sons com o corpo, cuspir fogo. Esta lógica opunha-se aos ideais de corpo perfeito, limpo e isolado que a ciência das últimas décadas do século XIX construíra, e da nova ordem exigida da vida disciplinada.
Artistas como trapezistas, malabaristas e equilibristas fazem do circo um lugar mágico, povoado de seres fantasticamente humanos em sua corporeidade e materialidade. Ao contrário que a ciência apontava, nos espetáculos os corpos deixam de ser um limite das potencialidades humanas para transformar-se em seu ponto de partida7. O corpo passa a ser considerado como o centro do espetáculo, de todas as variedades apresentadas pela multifacetada atuação de seus artistas. Esse corpo exibido em movimento constante despertava o riso, o temor e, sobretudo, a liberdade8.
Considerando o "movimento circo" como uma especialidade das artes onde o corpo é o protagonista, onde os artistas se expressam através de suas ações e gestos ensaiados, é possível considerar que a expressão humana ali representada antecede os próprios conceitos de circo ou artes do circo9.
A gargalhada deu vida a um dos principais personagens que sustentam a comicidade circense: o palhaço, "esse fazedor de graça que é tão antigo quanto o tempo, e quanto à própria arte circense"10. Os primeiros palhaços italianos se vestiam de espantalhos, utilizando palha dentro da roupa para amortecer as quedas, daí a designação dada a esse artista. O palhaço foi considerado símbolo do circo do século XIX, pois através de suas roupas espalhafatosas, das atitudes atrapalhadas, da inversão de coisas e partes do corpo ele fazia a platéia rir, assumindo assim, o riso, um caráter festivo.
No Brasil, antes da chegada do Circo, famílias de ciganos e saltimbancos que vieram da Europa, tinham como especialidades a doma de ursos, o ilusionismo e as exibições com cavalos. Viajavam de cidade em cidade, e adaptavam seus espetáculos ao gosto da população local e à medida que viajavam agregavam novos artistas, isso fez com que o circo se apropriasse da cultura de cada região visitada. Números que não faziam sucesso na cidade eram tirados do programa11.
Instalando-se na periferia das grandes cidades e voltado para as classes populares os nômades usavam tendas e nas festas sacras, havia bagunça, bebedeira, e exibições artísticas, incluindo teatro de bonecos. A modernização do circo não se deu em termos de espaços e equipamentos, mas sim no elemento humano, suas habilidades e criatividade.
Alguns historiadores alegam que o circo chegou ao Brasil antes de 1800 e para outros foi entre 1820-1830, mas foi somente em 1834 que temos o registro da chegada de um circo formalmente organizado, o de Giuseppe Chiarini. Este circo pode ser considerado um ponto de referência para se compreender o encontro do circense europeu com os artistas e as experiências locais, através dos espetáculos que apresentam claramente o modelo europeu de fazer circo, mas por outro lado sofre mudanças na produção do espetáculo pela incorporação, assimilação e mistura de novos elementos vivenciados12.
Do palco à escolaA partir de 1910 o circense instala, junto com o picadeiro, um palco para encenar dramas: é o teatro no circo. Até então, os circenses encenavam sketchs e comédias. A aprendizagem dos textos destas encenações seguia a regra, era feita por meio da transmissão oral: de seus próprios familiares ou através de imitação do teatro e do cinema ou mesmo por meio de trocas dentro do próprio "mundo circense"13. Mas o teatro no circo introduz definitivamente a linguagem escrita no circo-família14.
O processo de trabalho no teatro pressupunha conhecimento da leitura e da escrita, além da criatividade gerada por um conjunto de saberes e práticas presentes no circo, garantiam ao circense a capacidade de encenar peças mesmo antes da entrada do palco de teatro no circo. Embora a transmissão dos saberes continuasse a ser oral, a escrita e a leitura foram definitivamente incorporadas à qualificação "verdadeira". O teatro significou um aperfeiçoamento da linguagem escrita e falada, bem como reforçou a idéia de que a aprendizagem, qualquer que fosse, era incorporada para reproduzir o circo-família.
O circo-teatro começou a aparecer em Minas Gerais no inicio do século XX através da iniciativa de um palhaço que enfrentava dificuldades financeiras em seu circo. A apresentação de comédias e dramalhões foi um recurso para tentar atrair o público que se encontrava escasso devido ao início da Primeira Grande Guerra, do surgimento do fonógrafo e do cinematógrafo que se fizeram concorrentes das apresentações circenses15.
De acordo com Silva (1996) a arte circense é, muitas vezes, considerada como o espetáculo mais antigo do mundo:
O circo é o último vestígio de um saber antigo, existencial e iniciático. Esse saber, essa arte ancestral e única que é o circo, só se perpetua graças a dois mecanismos: a transmissão do saber de pai para filho, e o ensino proporcionado por uma escola. (Ziegler, J.).
A transmissão do saber de geração a geração é uma característica que circo herdou dos artistas ambulantes e saltimbancos. Desde 1770, formaram-se "dinastias circenses" que saíram da Europa Ocidental transmitindo a arte circense de pai para filho. No Brasil, a partir de 1830, registra-se a presença de várias famílias circenses européias, muitas chegaram como saltimbancos, trazendo a "tradição" da transmissão oral dos seus saberes16.
A estes circos formados por grupos familiares foi dado o nome de "circo dos tradicionais". Esta organização familiar era a base de sustentação do circo. A transmissão do saber circense fazia deste mundo particular uma escola única e permanente. O que se aprendia era suficiente para ensinar a armar e desarmar o circo, a preparar os números ou peças de teatro, além de treinar as crianças e adultos para executá-los. Este conteúdo tratava também de ensinar sobre a vida nas cidades, as primeiras letras, as técnicas de locomoção do circo. Através deste saber transmitido coletivamente às gerações seguintes, garantiu-se a continuidade de um modo particular de trabalhar e de montar o espetáculo17.
No ensinar e no aprender estava a chave que garantia a continuidade do circo, estruturado em torno da família18.
A partir de 1930-40 começam a aparecer as primeiras escolas especializadas na formação de artistas e consequentemente o modelo clássico de circo sofre mudanças. A descentralização do conhecimento marca a mudança, já que, até esse momento o conhecimento era mantido no interior da lona, em "posse" da família, transmitido de geração em geração.
O aparecimento da escola proporciona um maior intercâmbio de conhecimentos, uma diversificação das modalidades, dos estilos, e fundamentalmente concretiza um conhecimento mais sistemático, organizado e talvez científico. As escolas foram se transformando em centros de intercâmbio da cultura circense e a modernidade facilitou a disseminação do conhecimento mais rapidamente19.
Esse processo de transformações a que o circo, como forma de entretenimento popular, está sujeito, levou a uma diferenciação na estrutura e espetáculo circenses. Todos esses acontecimentos fizeram nascer novos artistas e os circos foram se espalhando e disseminando a cultura circense pelo mundo20.
Podemos considerar que a linguagem do circo foi se adaptando aos novos valores da sociedade, às expectativas técnicas e principalmente estéticas (visuais) deste momento histórico, mas isso não foi suficiente para eliminar o modelo "tradicional" de circo, o qual ainda é presente na maioria dos "Circos" do Brasil, Europa e mundo.
O circo contemporâneo como alguns historiadores o chamam apresentam um modelo que prospera atualmente sendo chamado de circo do homem por envolver somente a figura humana nas performances, excluindo a participação de animais. Seu formato, que por certo ainda está em pleno desenvolvimento, representa uma tentativa de incluir as artes do circo às exigências do mercado artístico contemporâneo, de fazê-lo acessível a todos os públicos, respeitando os valores sociais, sem deixar de cumprir os objetivos primordiais do circo: a alegria, a ilusão, a fantasia, em nome do entretenimento21.
A linguagem oral e transmissão de saberes através de uma escola é uma representação das transformações que o circo vem vivendo. Uma escola de circo que se torna cenário da realidade de muitos sujeitos é aqui estudada como uma possibilidade de lazer que educa para a cultura e para a independência na escolha de atividades de lazer.
Do ponto de vista dos estudos culturais é possível dizer que o lazer é uma dimensão da cultura entendida em seu sentido mais amplo, englobando os diversos interesses humanos, suas diversas linguagens e manifestações. O lazer pode ser efetuado no "tempo livre" das obrigações, profissionais, domésticas, religiosas, e das necessidades físicas. Além disso, é preciso considerar a busca pelo prazer que as vivências possibilitam embora nem sempre isso ocorra e embora o prazer não deva ser compreendido como exclusivamente de tais atividades conforme destacam Melo; Alves Júnior (2003).
Neste contexto, é preciso entender a relação existente entre lazer e escolas de circo, as oportunidades geradas por esses espaços para desenvolver o caráter humano, a criatividade e autonomia através de vivências que podem levar ao desenvolvimento de relações pessoais.
Considerações finaisNeste trabalho foi abordada a história do circo na Europa, sua inserção no Brasil e como cada artista compôs sua história neste cenário. No primeiro momento do texto faço a construção de uma narrativa da história do circo dialogando com o corpo circense e com o surgimento do teatro nas apresentações. Gostaria de pontuar a questão da transmissão do saber circense, que antigamente transmitido dentro do próprio circo, de pais para filhos e assim continuava a tradição de seus espetáculos. Já na contemporaneidade o surgimento de escolas de circo marcam a continuidade da história do circo através da sistematização da técnica dos movimentos a serem ensinados.
O circo é um espetáculo cultural permanente. Ele continua, ainda que com profundas transformações, encantando multidões. Independente das transformações que sofreu durante sua trajetória a história do circo nos diz que a cultura circense atravessou décadas e aparece nos dia de hoje com uma nova roupagem apresentando espetáculos de beleza e desafios como antigamente.
A escola de circo, além de cumprir o papel social de transmissão da arte circense e de educação informal, aparece no cenário atual como tempo e espaço de diversão e desenvolvimento pessoal. Cada vez mais as pessoas buscam na atividade de circo um momento de lazer. A escola proporciona aos alunos a vivência da atividade física, o contato com uma nova cultura, a participação em espetáculos possibilitando vivências diferenciadas nos momentos de lazer dos sujeitos.
Notas
Bortoleto, Machado (2003). O circo moderno era considerado como espetáculos de variedades, onde homens e animais compartilham cenário demonstrando suas habilidades, seja na rua, num teatro, numa feira, num hipódromo, numa praça de touros, ou em seu ambiente mais característico, "na lona"
Regina Horta Duarte, 1995.
Ibidem p.36-40
Ibidem
Ibidem
Regina Horta Duarte, 1995.
Regina Horta Duarte, 1995.
Ibidem
Bortoleto e Machado, 2003.
A história do circo, 2001.
Polosso, 2004
Ermínia Alves, 2003 p.38
Ermínia Alves (1996)
Ermínia Alves (1996).Do final do século XIX à metade do seguinte, é possível observar um circo que desenvolveu relações sociais e de trabalho específicas, como resultado das várias formas de adaptação entre o artista imigrante e a consolidação do circo como uma escola, além das ligações entre as várias famílias circenses - proprietárias ou não. A este conjunto chamei de circo-família.
Regina Horta Duarte, 1995.
Ermínia Alves, 1996
Ibidem
Ibidem
Bortoleto e machado
Magnani (2003)
Bortoleto e Machado, 2003.
Referências
BORTOLETO, Marco A. C. MACHADO, Gustavo de A. Reflexões sobre o circo e a Educação Física. Corpoconsciência, Santo André, n. 12, p. 39-69, jul./dez 2003.
DUARTE, Regina Horta. Noites Circenses: Espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço: Cultura Popular e Lazer na Cidade. São Paulo: Hucitec, 2003.
POLOSSO, Hugo. Papo-cabeça pra pensar. Almanaque Brasil de cultura popular. Ano5 n. 60 Março 2004, p.20-23.
SILVA, Ermínia. O circo "- sua arte e seus saberes - o circo no Brasil do final do século XIX a meados do XX. Dissertação Mestrado Março 1996, Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.
SILVA, Ermínia. As múltiplas linguagens na teatralidade circense: Benjamim de oliveira e o circo teatro no Brasil no final do século XIX e início do XX. Tese de Doutorado (...) UNICAMP.
www.circospasso.art.br, acessado em10/09/04 e 21/03/05
revista
digital · Año 11 · N° 101 | Buenos Aires, Octubre 2006 |