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Caminhar: Um relato das cinestesias e
das experiências sinestésicas

   
Mestranda /DEF/IB/UNESP. Rio Claro
(Brasil)
 
 
Jaqueline Castilho Moreira
jackycastilho@uol.com.br
 

 

 

 

 
Resumo
     Este estudo, de natureza qualitativa, tem por objetivo investigar as experiências subjetivas e corporais sentidas, durante uma caminhada longa. Por meio de um depoimento pessoal, foi pesquisado o trajeto conhecido como "Caminho da Fé", que liga as cidades de Tambaú à Aparecida, ambas em São Paulo. Durante o percurso de quatorze dias, perceberam-se alterações cinestésicas, ligadas aos fusos musculares, aos órgãos tendinosos e aos receptores cutâneos, assim como, a construção de experiências que envolviam duas sensações simultaneamente ou de sensações secundárias, chamadas por Stoddart (1926) de sinestesias. Através desse depoimento pessoal, pode-se notar, em diversos níveis, como a interação com o grupo e com os moradores locais, foi importante para motivar a finalização do trajeto.
    Unitermos: Caminhada. Sinestesia. Cinestesia. "Caminho da Fé".
 
Abstract
     This study, of nature qualitative, has for objective to investigate the subjective and corporal experiences sensible, during a long jogging. Through one self-report, it was researched the "Caminho da Fé", that binds Tambaú to Aparecida cities, both in São Paulo. During fourteen days, the person perceived kinesthesis, on alterations to muscular spindles, to cutaneous tendinosos and to receiving agencies, as well as, construction others sensations experiences, that involved two sensations simultaneously or secondary sensations, those Stoddart (1926) named sinestésic. Through this self-report, it can be noticed in diverse levels, as interaction with the group and the local inhabitants, was important to motivate finishing of the passage.
    Keywords: Jogging. Secondary sensations. Kinesthesis. "Caminho da Fé".
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 101 - Octubre de 2006

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Introdução

    Originado do celta e vulgarizado no latim por cammini, o termo "caminho" significa direção e destino. Ao colocar a palavra em ação, Ferreira (1986), num sentido figurado, define-a também como ir para frente, progredir, adiantar-se.

    A possibilidade de atingir lugares distantes, caminhando, muitas vezes sem a perspectiva do retorno, é uma atividade ancestral do ser humano. A proeza de voltar ao ponto de partida, desde tempos distantes, evidencia novas perspectivas para aqueles que regressam.

    Com expansão dessas simbologias e reflexões, a caminhada contemporânea evoluiu e tornou-se também uma atividade física, uma terapia, uma forma de lazer, um esporte competitivo, ou mesmo uma forma encontrada pelo homem urbano de administrar seu estresse cotidiano.

    Apesar do caminhar parecer uma tarefa simples e quase automática, é uma habilidade bastante complexa que requer a atenção do: sistema nervoso central, músculos e articulações, vários sistemas sensoriais, forças gravitacionais e circunstâncias ambientais (GALLAHUE e OZMUN, 2003).

    Nesse sentido, o objetivo desse estudo é investigar quais as experiências subjetivas e corporais sentidas, relacionadas à construção de sinestesias e da propriocepção, neste texto, usada como sinônimo de cinestesia, durante uma caminhada longa.


Considerações teóricas

    Para um melhor entendimento do assunto, torna-se importante assinalar as semelhanças e diferenças entre as cinestesias e as sinestesias.

    A principal semelhança entre elas é que ambas estão ligadas as sensações, embora impliquem em diferenciados processamentos de informações. Segundo Machado (2000), as sensações são aplicações práticas das grandes vias aferentes, na qual o reconhecimento do mundo externo é realizado pelas diferentes formas de sensibilidades.

    Essas sensibilidades são classificadas em:

  • especiais: dentre elas a visão, a audição, a olfação e o equilíbrio;

  • gerais: das quais fazem parte o tato, a sensibilidade à pressão, temperatura, dor, sede, fome, além da propriocepção/cinestesia.

    Aprofundando-se nas sensações cinestésicas, Schmidt e Wrisberg (2001) descrevem-nas como informações sensoriais vindas do sistema motor que sinalizam os movimentos dos segmentos e a tensão dos músculos durante uma atividade motora.

    São vários os receptores cinestésicos. Dentre eles tem-se os fusos musculares, que propiciam informações sobre a velocidade da mudança de posição das articulações, tensão do músculo, assim como a orientação do segmento em relação à gravidade. Os órgãos tendinosos de Golgi, que encontram-se próximo à junção entre o músculo e o tendão, sinalizando o nível de força das várias partes do músculo. E por último, têm-se os receptores cutâneos, responsáveis por oferecer informações sobre pressão, temperatura, toque entre outras. A cinestesia, diferente das sensações gerais, envolve uma combinação complexa de estímulos integrados ao sistema nervoso central (SCHMIDT e WRISBERG, 2001). Complementam Gallahue e Ozmann (2003), ao acrescentar a importância do sistema vestibular na recepção dessas informações. Sua função básica é fornecer dados relativos aos movimentos e posições da cabeça. Localizado em cada câmara auditiva, as estruturas que o compõem estão envolvidas pela "endolinfa" e na medida em que, o indivíduo se movimenta, novas informações são repassadas, almejando o constante restabelecimento da base de apoio durante os ciclos das passadas.

    Enquanto a cinestesia é uma sensibilidade geral, as sensações secundárias, ou sensações que acompanham sensações de outras modalidades foram batizadas por Stoddart (1926) como sinestesias. Ferreira (1986) e Campbell (1986) exemplificam-nas, citando pessoas que experimentam sensações auditivas e visuais concomitantemente.

    Relevante investigação sobre as sinestesias foi realizada por Farina (1982), por meio das cores e suas combinações, para o uso na comunicação publicitária. Neste estudo o autor revela que, a sensação da cor "não entra por conta própria na consciência, mas esta se dispõe ativamente a percebê-la, prestando-lhe a atenção ou não, registrando-a ou não" (FARINA, 1982: 170-171). Segundo ele, para que estes mecanismos sejam ativados, são necessários além da primeira impressão, o reconhecimento da sensação da cor, por meio do resgate de repertórios anteriormente memorizados; o tom afetivo da experiência anterior, as motivações vigentes no momento, enfim, um processo de "construção".

    Perante essas duas possibilidades de experimentação sensorial, vários aspectos que envolvem o "caminhar", foram questionados.

    Como as caminhadas, aparentemente, não exigem grande aprendizagem e nem técnicas especiais, podem ser praticadas por todos os tipos de pessoas.

    Atualmente são oferecidas diversas modalidades de prática, tanto do âmbito esportivo como do lazer. A caminhada em trilha ou trekking é uma caminhada rústica de sobrevivência, que nestes últimos anos, tornou-se uma atividade desportiva e/ou recreativa alternativa (BENI, 1978). Já o pedestrianismo ou jogging, consiste em grandes marchas a pé, com percursos acima de dois quilômetros, de modo livre e assistemático em caminhos e terrenos abertos, urbanos, que podem ser desde praças, logradouros públicos, estradas a rodovias.

    Santos (2005) ressalta um exemplo peculiar de pedestrianismo, as caminhadas religiosas. Essas viagens por terras distantes (FERREIRA, 1986), são devoções milenares, sendo que a mais antiga, lendária e mística é o "Caminho de Santiago de Compostela" na Espanha.

    No Brasil, as peregrinações mais difundidas e antigas são as "Caminhadas a Aparecida", existentes desde o século XVI. (SANTOS, 2005).

    A busca pelo sagrado e a fé, durante todos esses anos, permitiu que pessoas sem preparação física nenhuma, equipamento, alimentação adequada, água e até mesmo sem trilhas, percorressem distâncias acima de 45 km, de dia ou de noite, para cumprir suas promessas, fazer pedidos e agradecer.

    Em 2003, foi criado o "Caminho da Fé", partindo de Águas da Prata/SP a Aparecida/SP. Seu primeiro prolongamento foi feito no mesmo ano, quando a cidade de Tambaú/SP passou a ser o marco zero do trajeto. Com adesão das prefeituras de 19 cidades, paróquias, dioceses, instituições públicas e privadas, o trajeto oferece os necessários pontos de apoio e orientação nas estradas vicinais de terra, trilhas e asfalto.

    Considerada uma caminhada longa, por ter a extensão de 425 km, soma trechos de jogging e trekking, com grau de dificuldade regular a médio, além de variações de altitude entre 1.500 a 542 m.

    Atrai turistas, peregrinos e praticantes de atividades físicas, que levam cerca de 20 dias, andando por aclives e declives da Serra da Mantiqueira, entre os Estados de São Paulo e Minas Gerais.


Metodologia

    Para um melhor entendimento, o estudo foi desenvolvido em duas etapas, sendo a primeira relativa à pesquisa bibliográfica sobre a temática em questão e a segunda, um estudo de campo, com a utilização da técnica de depoimento pessoal, obtido por meio do diário da pesquisadora.

    Os depoimentos pessoais constituem "um relato de experiência individual que revele as ações do indivíduo como um agente humano e como um participante da vida social" (BLUMER citado em KOSMINSKY, 1986, p. 32).

    Dessa maneira, tentamos compreender as experiências vivenciadas na prática de uma caminhada longa. Embora aspectos cinestésicos pudessem ficar evidenciados até mesmo numa esteira; as experiências sinestésicas, em especial as "construídas", não ficariam suficientemente contempladas numa caminhada qualquer, principalmente pela necessidade de se investigar o fenômeno, durante um tempo hábil suficiente para que fosse possível o desenvolvimento e percepção destas sensações.


Resultados

Os preparativos

    No dia anterior ao início do percurso do "Caminho da Fé", não consegui dormir direito. Estava aflita com o tanto que teria que andar com minha bota impermeável, amaciada por apenas um mês, os onze quilos da mochila e da possibilidade de chover durante o trajeto... Tudo isso ficou girando na minha cabeça, ao mesmo tempo em que, sabia que tinha que dormir, porque o dia seguinte seria longo, ensolarado e difícil.

    Em meio à insônia, analisando-me sinceramente, intui que talvez pagasse um alto preço por me propor a fazer essa caminhada sem preparo físico algum, já que esperava que os pesquisados que encontraria pelo trajeto, estariam nessas mesmas condições... Entretanto também gostaria de sentir o que é ir pela fé... Ou, por um propósito bem estabelecido e testar meus limites.


A sede

    No primeiro dia, P.D.L. e eu saímos de Tambaú (SP), por volta das onze horas. Depois de muito andarmos, errarmos e subirmos morros, o nosso suprimento de água acabou. Não havia nenhuma casa próxima e nenhum poço. Estávamos exaustas, porém faltava ainda muito tempo, para chegar à Fazenda Campo Alegre, entre Tambaú e Casa Branca (SP), nosso destino daquele dia.

    Um sol insuportável nos acompanhava, e ao avistarmos uma plantação de laranja ao longe, não tivemos dúvida. Numa marcha rápida, chegamos à cerca, jogamos as mochilas e arrumamos forças, para pularmos. Sentamos no chão, comemos as laranjas verdes, passadas, quentes, enfim, aquelas que conseguíamos pegar e descascar.

    Nesse primeiro dia de amizade, nós duas esquecemos as convenções sociais.... O que selou nossa amizade pelo resto do caminho e até hoje.


A ação dos fusos e órgãos tendinosos

    Após 18 km do primeiro trecho, realizado em oito horas, chegamos à sede da fazenda. A bota nova havia transformado o calcanhar direito em uma grande ferida, e por isso já no final desse dia, não agüentava mais colocar o pé direito no chão, de modo que comecei a mancar, forçando o pé esquerdo e o joelho direito.

    Quando finalmente deixamos as mochilas no quarto e caminhamos em direção a cozinha para tomarmos água, P.D.L. e eu experimentamos uma sensação inesquecível. Parecia que estávamos voando pelos corredores da antiga fazenda de café, tal deveria ser a confusão dos receptores da nossa coluna depois da caminhada.

    Após saciarmos a sede, preparamos uma bacia com salmoura para aliviar as bolhas, as feridas e o inchaço, que era grande. No início a dor causada pelo sal foi imensa, mas depois de alguns minutos, a salmoura cauterizou e transformou-se num bálsamo.

    Não havia como sair da fazenda se não fosse a pé. No dia seguinte estávamos prontas para mais uma jornada: "E que Deus nos ajude, só por hoje".


A epopéia do sapato inadequado

    Nossos pés não tinham condição para calçar o mesmo sapato do primeiro dia. Abandonei a bota, enchi meus pés de esparadrapo, coloquei um absorvente na sola do pé esquerdo, que agora estava numa bolha única e calcei o meu bom e velho tênis de pano. P.D.L. tinha muitas bolhas também, algumas já furadas e vazando. Mancando, mas graças à firmeza de nossos cajados e nossa motivação de segundo dia, passamos por trilhas, apreciamos a natureza, até chegarmos ao mosteiro em Casa Branca/SP.

    Neste trajeto, por conta das bolhas, minha marcha estava totalmente patológica. Apoiava-me totalmente no lado esquerdo, já que meu joelho direito havia inchado e o calcanhar do mesmo lado, não estava nada bom. Os calçados inadequados, tanto de minha amiga como o meu, colaboraram para uma cinesiologia de caminhada totalmente errada... Na qual os resultados não seriam só imediatos: bolhas e feridas, mas muito mais sérios e profundos, como uma tendinite de joelho, que me acompanhou pelo resto do trajeto.

    A imagem que fazia de meu corpo era de uma construção de peças encandeadas de dominó, que a cada novo movimento caiam ou desmoronavam.

    Nos primeiros dias, os pés incharam bastante, um pouco por causa das bolhas e feridas e outra, acredito pelo retorno venoso ainda não adaptado ao exercício. Andar entre 20 a 30 quilômetros por dia, para mim era extenuante. A retenção de líquido apesar de menos aparente, se prorrogou por todo o trajeto. Mesmo tomando bastante água nos poços pelo caminho, não havia grandes eliminações, nem por sudorese, nem por micção.


Os ataques de riso

    Durante o percurso, conversávamos sobre nossas vidas, o que víamos de bonito na natureza, ríamos, contávamos piadas como forma de passar o tempo, superar as distâncias e alentar nossas dores e preocupações mais íntimas. Participamos de vários episódios engraçados, sendo que talvez o que mais mereça ser registrado seja esse:

    Era o quinto dia de caminhada. Estávamos segundo Costa (1983) adaptando-nos ao exercício e, portanto saindo da fase de depressão. Tínhamos muitas bolhas drenadas, algumas feridas em processo de cicatrização, sapatos trocados e compúnhamos um grupo de cinco pessoas. Estávamos no trajeto Águas da Prata/SP ao Pico do Gavião, próximo à Andradas/MG. Eram 24 km de subida. O casal que conhecemos em Vargem Grande do Sul disparou na frente, e nós, agora três, P.D.L., O.A.T. e eu, arrastávamos pelo caminho. A estrada era de terra batida e havia movimento de muitos fuscas e motos, indo e voltando dos pequenos sítios da região.

    Paramos em um deles para nos abastecer de água. Fomos recebidos por um sitiante, que nos contou das suas experiências de peregrinação a Aparecida quando jovem. Como era difícil e cansativo, mas também como era gratificante. Falamos sobre o início do percurso, mostramos nossos pés e ele, apesar de sua modesta casa, logo nos convidou a tomar um café e comer "queijo meia-cura" feito no próprio local.

    Foi muito bom, pois saímos de lá renovados em nossa perseverança de chegar a Aparecida. Tomamos vários medicamentos para dor e seguimos a viagem. Nesse dia, cataflan e dorflex foram ingeridos como homeopatia, de duas em duas horas.

    Tínhamos que subir um morro em direção ao Pico do Gavião. Um fusca bem velho subia em sua alta velocidade, deixando para trás uma bruma de poeira. Estávamos tão exauridos pelo sol e pelas bolhas, que toda hora parávamos para descansar. Uns quinze minutos depois, o mesmo fusca passou por nós e o motorista e a passageira acenaram. Continuamos a subir. Faltava muito para chegar ao topo. Vimos uma sombra e logo paramos, para comer um sanduíche e descansar. Uma hora depois, o fusca velho passou novamente por nós. O motorista parou e nos perguntou: "- Quanto vocês estão fazendo por hora?" O.A.T. respondeu baixinho: -"Doz por hora." "- Quanto? Doze por hora?" "- Não dois por hora." "-Ah! É por isso que vocês ainda estão aqui!" Tivemos um ataque de riso juntos, pois nossas condições físicas não permitiam outra velocidade.


Fé, propósito ou testar limites?

    No meio do caminho, em Andradas/MG, tive uma virose muito forte. Fui internada, fiquei muito fraca e tomei soro. Pensei em desistir, mas, estava tão mal, que não conseguiria nem voltar para Ribeirão Preto/SP de ônibus.

    No dia seguinte melhorei e persisti, apesar da febre e das diarréias. Tomei um táxi e encontrei meus companheiros em Ouro Fino/MG.

    Acordamos bem cedo e seguimos para Consolação. Só quem anda vinte quilômetros a pé com diarréia é que entende... Nesse dia, subimos e descemos vários morros. Senti-me muito mal. Comecei a ficar tonta, por conta da hipoglicemia, achei que fosse desmaiar. Não passava ninguém. Nenhum fusca, nada.

    Muitas pessoas acreditam que em caminhadas longas, você pode durante a atividade, envolvida pela beleza do entorno, refletir sobre sua vida. Não conseguia realizar nenhum tipo de introspecção, mesmo em momentos que andava sozinha. Quando parava de sentir as bolhas, meu joelho direito doía e travava. Pensava no inchaço que incomodava, na sede, na administração das barras de cereal para não ter diarréia ou hipoglicemia, ao mesmo tempo em que, me preocupava com as pedras soltas das descidas e nos buracos das subidas, para não deixar cair as máquinas, fotográfica e filmadora. Culpava-me por ser lerda e ficar para trás.

    Mas nada como um dia após o outro e um passo de cada vez. Consegui chegar a Aparecida e percorrer a pé 300 km, dos 425 km totais.


Lições do caminho

    Não vi em nenhum momento meus amigos jogando lixo no caminho. Ninguém arrancou planta, nem pedra para levar... Peso extra na mochila, para quê? Com mais de seis quilos, a mochila fica insuportável e aí acontece a "Síndrome do Sedex". Os peregrinos entendem que precisam se desfazer de coisas pelo caminho. Uns despacham o excesso de bagagem pelo correio, outros doam. No caminho, você aprende que tudo tem que ser na medida. Nem muito remédio, nem pouco, nem muita roupa, nem muito papel de anotação. Entendi que se vive muito bem com pouca coisa.

    Descobri também que é muito fácil sobreviver como um mendigo. Quando se tem sede, você bate numa casa, muitas vezes pobre, para pedir água. E apesar das roupas caras de dry-fit, encobertas pelo suor e pela grossa poeira das estradas de terra... Não passamos de um tipo de pedinte. Não existe água para comprar na maior parte da jornada. Pedir é também um aprendizado do "Caminho". As pessoas te recebem, conversam, pedem para rezar por elas quando chegarmos a Aparecida, algumas abraçam, choram e até oferecem um dinheirinho, para colocar nos pés da santa, e principalmente, incentivam a continuar.

    Em muitos momentos, não vou negar... Orei. Pedi a Deus para completar o percurso de uma cidade a outra e a agüentar a dor das bolhas e o calor, "só por hoje" como falam os Alcoólicos Anônimos. E o desafio continuava... Anoitecia, parávamos e no dia seguinte sempre era um outro dia... Cantarolar, rir e contar piada também ajudava.


As mudanças

    Além da mudança interior representada pelo despojamento e pela valorização de pequeninas coisas, algumas mudanças mais profundas foram percebidas. Reflexões posteriores, levaram-se a questionar sobre as razões de tanta correria, o "ter que fazer", a distância da família e dos amigos, complementados pelo questionamento da real necessidade de esforços cada vez mais vigorosos, para se alcançar objetivos, que depois da caminhada, se apresentaram inadequados.

    Acrescida a essas mudanças, algumas alterações físicas e orgânicas também ocorreram. As bolhas posteriormente se transformaram em calos, e muitas unhas começaram a nascer defeituosas. A tendinite do joelho se curou. Mas apesar de tudo isso, ficou uma sensação de gratidão muito grande, principalmente com aqueles andaram conosco.

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Discussão

    Através desse instrumento, pode-se perceber a presença das cinestesias e da construção de experiências sinestésicas, durante a caminhada.

    O relato das cinestesias ocorreu logo no primeiro dia, com a sensação de voar, após retirar os 11 quilos extras de equipamento, resultado das informações sensoriais confusas emitidas pelos receptores da coluna. Os calçados inadequados, a falta de preparo físico, o excesso de peso levou a uma marcha patológica que comprometeu em muitas ocasiões, a realização do estudo.

    Quanto às sinestesias, o estudo apresentou vários exemplos. Entre elas, a visão do laranjal ao longe associada à sensação gustativa, fez com que fossem vencidos o cansaço e a sede. Ou ainda, a construção de um mecanismo de substituição simultânea, da sensação dor pela atenção auditiva. São exemplos disso, o trocar o enfocar a dor pelo prestar atenção numa piada, entender e sorrir. Ou ainda, flagrar-se desviando a atenção da dor, sede, fome e calor, para ouvir as conversas dos moradores do local e a dos companheiros.

    Outras experiências foram vivenciadas, como resultados de construções cinestésicas e sinestésicas. Apontam-se o despojamento e o administrar a agressividade, como uma forma de vencer um obstáculo, no episódio do "subir a serra como boi bravo".

    Com relação aos outros estímulos, em especial o visual da paisagem, dependendo da situação e da geografia, ele contribuía negativamente; enquanto que em outros, quando indicava a proximidade do destino, estimulava a continuar. O sentido olfativo funcionava de forma diferenciada. Quando sentíamos "cheiro de almoço", ou outros, desagradáveis, disparávamos.

    A interocepção associada ao inchaço, a como me sentia pós-virose, a hipoglicemia, as tonturas, ao estar vestida como uma mendiga, em algumas circunstâncias provocava baixa auto-estima, o que era um estímulo negativo.

    Durante a análise dos dados, foram evidenciadas também anestesias ou "ausências de sensação" (CAMPBELL,1986). Elas ocorreram em função da narcose do exercício; dos medicamentos, assim como de algumas estratégias psicológicas. Dentre elas, pode-se citar o permitir-se um tempo para que o corpo se aqueça e a dor seja controlada. Ou ainda, o estímulo visual provocado pela visão dos companheiros indo, apesar de cada um ter suas próprias dores e dificuldades; as conversas estimuladoras para continuar a jornada, a torcida dos familiares que se comunicavam conosco; o convívio com os companheiros, a receptividade dos moradores, a contemplação da paisagem, as risadas, as músicas cantaroladas; o slogan "só por hoje"; a oração, a experiência de se despojar do orgulho e pedir ajuda, o ajudar os outros, a fé em Deus e a oração.


Considerações finais

    Foi possível por meio de uma atividade física intensa e durante um período de tempo de quatorze dias, a experimentação de diversas sensações. Desde as cinestesias ou propriocepção às sensações combinadas como as sinestesias relacionadas a algum tipo de desconforto como a dor, a sede, o calor e a fome e sua conversão para o estímulo de prosseguir.

    Através desse depoimento pessoal, pode-se notar em diversos níveis, como a interação com o grupo e com os moradores locais, foi importante para motivar a finalização do trajeto.

    Foi desvendada uma nova possibilidade de investigações, a cerca dos processos de controle de sensações.


Referências

  • BENI, M. Análise estrutural do Turismo. São Paulo: SENAC - São Paulo, 1997.

  • CAMINHO DA FÉ. Brasil. Mapa. Disponível em: http://www.caminhodafe.com/mapa_2er5t55/mapa.htm. Acesso em 14/12/2005.

  • CAMPBELL, R. J. Dicionário de psiquiatria. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

  • COSTA, L. P. C. Treinamento esportivo em regiões de altitude. In: PINI, M, C. (Org.). Fisiologia Esportiva. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 1983, p.211-228.

  • FARINA, M. A psicodinâmica das cores em Comunicação. São Paulo: Edgar Blücher, 1982.

  • FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

  • GALLAHUE, D; OZMUN, J. Compreendendo o desenvolvimento motor: bebês, crianças, adolescentes e adultos. São Paulo: Phorte Editora, 2003.

  • KOSMINSKY, E. Pesquisas qualitativas: a utilização da técnica de histórias de vida e de depoimentos pessoais em sociologia. SBPC: Ciência e Cultura. São Paulo, v. 38, jan. 1986, n.1, p. 30-36, 1986.

  • MACHADO, A. Neuroanatomia funcional. São Paulo: Atheneu, 2000.

  • SANTOS, J. F. B. Dia mundial da caminhada - Brasil. In: LAMARTINE DACOSTA (org.). Atlas do esporte no Brasil: Atlas do esporte, da educação física e atividades físicas de saúde e lazer no Brasil. Rio de Janeiro: Shape, 2005, p 582- 587.

  • SCHMIDT, R. A.; WRISBERG, C. A aprendizagem e performance motora: Uma abordagem da aprendizagem baseada no problema. 2ª ed. Porto Alegre: Artmed Editora, 2001.

  • STODDART, W. H. B. Mind and Its Disorders: A Textbook for Students and Practitioners of Medicine.London: H. K. Lewis & Co. Ltd. 1926.

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revista digital · Año 11 · N° 101 | Buenos Aires, Octubre 2006  
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