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Analise de conteúdo da produção científica sobre infância,
criança e deficiência no Colégio Brasileiro de Ciências do
Esporte: um recorte temporal de 1978 a 1999

   
Doutoranda no Programa de Políticas Públicas e Formação Humana
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde é bolsista da FAPERJ.
Integrante do Núcleo de Pedagogia Institucional - NUPI - Faculdade de
Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
 
 
Cristina Borges de Oliveira
cb811@hotmail.com
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
     Resultado da pesquisa intitulada; Políticas educacionais inclusivas para criança deficiente: concepções e veiculações no Colégio Brasileiro de Ciência (CBCE) 1978-1999, estudo qualitativo do tipo bibliográfico adota como problemática central de investigação as incursões teórico/práticas que têm norteado a produção científica da Educação Física, brasileira, a respeito da infância, criança e deficiência. Objetivo identificar as concepções e representações sobre criança, infância e deficiência que veêm sendo construída e veiculada por essa produção, compreender as possíveis imbricações da produção da Educação Física (EF) com as orientações internacionais e as políticas públicas inclusivas. O objeto de análise é a produção teórica divulgada no Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte. A análise dos dados bibliográficos foi realizada a partir de uma orientação ensejada no Materialismo Histórico Dialético - e de algumas de suas categorias como totalidade, contradição, historicidade, movimento - utilizando como procedimento à Análise de Conteúdo. Foram analisados artigos e textos completos totalizando 17, publicações. Na análise, identificamos uma visão naturalizada e a-histórica de criança e de infância; a deficiência vista como déficit biológico, negação das diferenças; ecletismo conceitual e fragilidade teórica; pouca ênfase na transmissão de conhecimento que venha proporcionar a emancipação, autonomia e senso crítico da criança deficiente.
    Unitermos: Produção científica. Criança. Infância, deficiência. Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 100 - Septiembre de 2006

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Introdução

    A inclusão de crianças deficientes na escola regular apresenta diversos problemas relativos à série de adequações e transformações espaciais, metodológicas, atitudinais, conceituais e valorativas necessárias para que haja a possibilidade de inclusão educacional dos deficientes. No Brasil, apesar dos evidentes esforços e avanços, determinados aspectos ainda são complexos no tocante à realidade educacional dessas pessoas, sendo que, a produção de conhecimento apresenta-se como condição fundamental e indissociável para a instauração de processos educacionais inclusivos de qualidade social para as crianças deficientes. A pesquisa científica é fator essencial na mudança de atitudes e na busca de formas mais efetivas para a inserção social de todos, o que contempla também a criança deficiente, daí a necessidade de reflexão e avaliação contínua desta produção a fim de contribuir com a sua melhoria qualitativa.

    Vários pesquisadores brasileiros têm investigado as possibilidades e contradições relacionadas à escolarização de crianças deficientes discutindo modelos teórico-práticos de educação e impactos e conseqüências das políticas educacionais na escolarização dessas crianças como Jannuzzi (1985), Mantoan (1997), Sanches-Gamboa (1998), Carvalho (2000). Entre as várias áreas acadêmicas que têm produzido conhecimento sobre o deficiente, a Educação Física (EF) apresenta-se como importante no que diz respeito à busca de elementos que possibilitem a inclusão da pessoa deficiente na escola regular.

    Existem significativas contribuições na produção científica da EF sobre deficientes (CARMO, 1989; COSTA, 1997; SILVA, 1999). O levantamento dos textos e resumos publicados pelo CBCE no período 1978 à 1999 explicita o crescimento no número de publicações. Silva reforça destacando que "apesar de existirem diferenciações no que se refere aos problemas e objetivos abordados, procedimentos teórico-metodológicos e epistemológicos comuns, norteiam a maior parte dos textos" (1999, p.1.048). Contudo, apesar das preocupações e avanços, tendo em vista a complexidade da questão sócio-educativa da EF para deficientes, é importante também compreender as contradições que estão presentes, revelando, na maioria das vezes, que a oferta de atendimento educacional para essas pessoas tem tomado rumos não condizentes com as suas necessidades reais.

    A revisão bibliográfica permitiu perceber a inexistência de pesquisas que dêem conta de mapear, na produção veiculada pelo Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, os trabalhos que tratam a temática deficiência. Aliado a isso, a compreensão do importante papel exercido por esta Entidade junto à comunidade científica da EF e áreas afins no processo de disseminação do saber foi o critério qualitativo utilizado para a escolha que subsidia o desenvolvimento deste estudo. Na estrutura da Entidade, o Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte (CONBRACE), através da publicação de Anais e a Revista Brasileira de Ciências do Esporte (RBCE) podem ser considerados os principais agentes de divulgação e discussão do que vêm produzindo pesquisadores da EF. Este contexto permitiu delinear como problemática de investigação Quais as concepções e representações de infância e deficiência estão presentes na produção teórica veiculada pelo CBCE no período 1978/1999 sendo que o estudo, de caráter bibliográfico, tem como recorte à produção científica (artigos, pontos de vista e textos completos) divulgada nos Anais dos CONBRACEs e nos exemplares da RBCE.


Explorando o material: momentos da análise de conteúdo referente à produção cientifica sobre infância, criança e deficiência divulgada pelo CBCE

    Para a organização e análise do material de investigação optamos pelo método de análise de conteúdo que, de acordo com Bardin (1995) é um bom e interessante instrumento de indução para se investigarem as causas (variáveis inferidas) a partir dos efeitos (variáveis de inferência ou indicadores, referências no texto). Segundo Trivinus é utilizado para o estudo "das motivações, atitudes, valores, crenças, tendências" (1987, p. 17). Ainda segundo o mesmo autor, o método de analise de conteúdo, em um enfoque dialético, é interessante

[...]para o desvendar das ideologias que podem existir nos dispositivos legais, princípios, diretrizes, etc, que a simples vista, não se apresentam com a devida clareza. [...] pode servir de auxiliar para instrumento de pesquisa de maior profundidade e complexidade, como o é, por exemplo, o método dialético. Neste caso, a analise de conteúdo forma parte de uma visão mais ampla e funde-se nas características do enfoque dialético. ( TRIVINUS, 1987, p.162)

    Barros e Lehfeld advogam que a análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise das diferentes formas de comunicação, portanto, pode ser utilizada quando se quer ir além dos significados aparentes, da leitura simples do real, "é atualmente utilizada para estudar e analisar material qualitativo, buscando-se melhor compreensão de uma comunicação ou discurso, de aprofundar suas características gramaticais às ideológicas e outras, além de extrair os aspectos mais relevantes"(1996, p.70).

    Inserido em uma perspectiva de pesquisa qualitativa, o método criado por Bardin (1995) é composto por um conjunto de técnicas de análises, também, em textos escritos que tem por objetivo a obtenção de indicadores quantitativos ou não que permitam inferir conhecimentos relativos às condições de produção/recepção das mensagens. Quando se estudam documentos legais é muito importante considerar o contexto não só lingüístico, mas também histórico, das expressões e conceitos uma vez que é essencial avançarmos para além do conteúdo explícito das mensagens, buscando compreender seu conteúdo latente, descobrindo as posturas ideológicas e as tendências que regem a vida social.

    A analise de conteúdo acende a possibilidade, sem excluir a informação estatística, muitas vezes de descobrir ideologias, tendências e outras categorias que caracterizam os fenômenos sociais que se analisam e, ao contrário da analise apenas do conteúdo manifesto, o método utilizado é dinâmico, estrutural e histórico. De acordo com Trivinus (1987, p. 161) são três as etapas básicas no processo de uso da analise de conteúdo: a pré-análise, a descrição analítica e a interpretação inferêncial.

    A pré-analise consistiu na organização do material de pesquisa que foram separados em três grupos bibliográficos, a seguir descritos: 1- Declarações internacionais que anunciam o princípio da inclusão a partir do paradigma de Educação para todos: PAM (1981), Declaração de Jomtiem (1990), Declaração de Salamanca (1994) bem como as políticas públicas educacionais brasileiras (Constituição Federal brasileira 1988, Estatuto da Criança e Adolescente 1990, Leis de Diretrizes e Bases da Educação 9394/96); 2 - Exemplares da RBCE e anais dos CONBRACEs que no período de1978/1999 publicaram textos e/ou artigos acerca da problemática da Educação Física voltada à pessoa deficiente; e 3 - Bibliografia específica sobre: história da infância, políticas públicas para infância e para as crianças deficientes, literatura pertinente à análise do processo de inclusão educacional e das mediações e interesses que permeiam a elaboração e efetivação de políticas públicas educacionais de caráter neoliberal.

    Coerente com o método de Bardin (1995), a leitura flutuante proporcionou condições de definirmos como nosso corpo de investigação - questões norteadoras, em função de teorias conhecidas - as relações entre a produção teórica da Educação Física e a atual legislação educacional brasileira ressaltando os interesses antagônicos que permeiam os discursos e práticas relacionadas ao atendimento educacional da criança deficiente. Para tanto elegemos como questão norteadora qual a relação entre os documentos legais, as orientações internacionais e as publicações, no que tange a concepções e veiculações no CBCE?

    A descrição analítica, a segunda fase do método de análise de conteúdo, começa já na pré-analise, mas nessa etapa, especificamente, o material é submetido a um estudo aprofundado orientado, em nosso caso, por algumas questões norteadoras e pelo referencial teórico-metodológico adotado e a literatura que permeia a elaboração e efetivação de políticas públicas educacionais de caráter neoliberal. Nesta etapa, procedimentos como a codificação, a classificação e a categorização são instâncias básicas, sendo que desta analise surgiram, em nosso estudo, quadros de referências. Assim, construímos um quadro demonstrativo que apresenta todas as publicações sobre deficiência nos Anais dos CONBRACEs e fascículos da RBCE no período recortado - em função do espaço disponível o quadro não pode ser exposto, porém pode ser encontrado na integra na dissertação de mestrado Políticas educacionais inclusivas para criança deficiente: concepções e veiculações no colégio brasileiro de ciências do esporte 1978/1999, Campinas/SP: FEF/UNICAMP, 2003.

    Tal quadro foi organizado de acordo com algumas categorias estabelecidas em resposta a seguinte questão norteadora: Quais são os elementos considerados importantes na leitura de revistas e anais? Nesse sentido, optamos por situá-los no tempo a partir da data de publicação e/ou da realização dos congressos. A data de publicação é fundamental para entendermos o ponto de vista político e das políticas emergentes e, ainda, as discussões teóricas da época que está recortada (no entanto vale lembrar que a data de publicação do material pesquisado é diferente da data de envio para o CBCE, podendo haver um extenso intervalo de tempo até que o material seja publicado, o que pode ocasionar certas defasagens relativas à temática) e explicitar o volume/o número para podermos ter esta referência localizada que nos dá a percepção da periodicidade e da freqüência.

    A identificação de autor/autores é outra categoria também importante para podermos compreender a linha paradigmática de atuação do mesmo, já que, na EF e no campo da educação, de modo geral, os pesquisadores vinculam-se a modelos e sistemas teóricos que podem indicar a filiação filosófica, pedagógica e política de tais autor/autores; a instituição na qual encontra-se inserido, pois na área da Educação Física, muitas vezes, a instituição tem uma determinada linha paradigmática, e o fato do autor estar vinculado a uma determinada Entidade, parece demarcar algumas tendências que se refletem na produção publicada. Outras categorias importantes presentes neste quadro são: o tipo de deficiência que é abordada no trabalho publicado, pois, permite perceber se houve privilégios a determinados tipos de deficiência na produção pesquisada, uma maior incidência de publicação sobre qual/quais deficiências;- a faixa etária para constatar o interesse pela educação da criança deficiente, - a área de referência onde procuramos identificar o caráter do atendimento ao deficiente nos diferentes âmbitos de atuação dos professores e pesquisadores da Educação Física (na escola, na reabilitação, no lazer, na formação profissional, em associações não governamentais, clubes etc).

    E por último, mas não menos importantes outras duas categorias são apresentadas; a sessão na qual o trabalho foi publicado na RBCE (artigos, relatos de experiência, resumos de dissertações e teses, pontos de vista, resumo de trabalhos apresentados nos CONBRACEs) e ainda nos Anais dos CONBRACEs (comunicações orais e coordenadas, resumo de tema livre, textos completos, painéis, entre outros); e o tipo de produção "com base nos procedimentos técnicos utilizados" (GIL, 1991, p. 47).

    Em função da delimitação da problemática, realizamos o levantamento e seleção de resumos e textos completos que tratam a temática infância/criança e deficiência, para o processo de análise de conteúdo apenas dos textos completos o que contabilizou um total de 17 textos. Esta etapa objetivou buscar sínteses coincidentes e divergentes de idéias sobre as concepções de criança/ deficiência, infância/ deficiência e as concepções de Políticas Educacionais para a criança que possui necessidades Especiais.

    Tais trabalhos foram objeto de uma análise mais aprofundada que corresponde à terceira fase da análise de conteúdo. Essa fase, interpretação inferencial, tem como suporte o material de pesquisa já organizado e sustenta-se nos processos reflexivos e intuitivos do pesquisador que avança para o estabelecimento de relações entre a problemática pesquisada e a realidade educacional e social ampla. De acordo com Taylor & Bogdan (1987, p.163), o investigador se desloca da descrição à interpretação através de conceitos e proposições. Em nossa pesquisa, a interpretação inferencial recaiu, a priori, sobre o campo epistemológico onde se inserem os textos analisados explicitando a abordagem teórica dos autores onde destacamos as concepções de criança, infância e deficiência.

    Para a sistematização da análise dos textos usamos a referência de Silva (1997) que por sua vez, fez uma adaptação da Matriz Referencial de Análise, modelo consagrado por Sanches-Gamboa (1998). Realizamos também uma adaptação no instrumento de registro da análise que, em nossa pesquisa, dá origem aos quadros que explicitam uma análise em diferentes níveis. Os 17 textos foram, então, categorizados em distintos níveis que podem ser assim explicitados: 1 - Nível metodológico - inserção dos textos, por aproximação, nas abordagens Empírico-Analítica, Fenomenológico-Hermeneutica e Crítico-Dialética (Sanches-Gamboa (1998); 2 - Nível técnico- tipos de pesquisa, instrumentos de coleta de dados, procedimentos de análise de dados; 3 - Nível teórico- temáticas abordadas, objetivos propostos, autores mais citados, propostas e críticas apresentadas; e 4 - Nível epistemológico- evidenciamos, de forma mais explícita, as concepções e representações de criança, infância e deficiência.


Tratamento dos resultados: representações de criança, infância e deficiência na produção científica do CBCE

    O caráter de provisoriedade do conhecimento não permite a elaboração de conclusões definitivas acerca da produção teórica veiculada no CBCE sobre a educação da criança deficiente, porém, impõe àquele que realiza o trabalho investigativo, o delineamento de sínteses que venham a contribuir para que possamos reconstruir, no campo das idéias, os dados da realidade. Desse modo, é possível alinhar alguns elementos que podem servir como balizadores da reflexão, discussão e intervenção da Educação Física no contexto da educação escolar de crianças deficientes. As concepções e representações de criança e infância não aparecem de forma explícita em grande parte do material analisado sendo que, somente foi possível identifica-las, a partir dos autores e teorias que serviram como referência para a construção dos trabalhos.

    Os textos que foram caracterizados como pertencentes à abordagem Empírico-Analítica (23,7%), em sua maioria, não discutem, explicitamente, a infância e/ou a criança o que, ao nosso ver, pode indicar que os autores dos textos consideram a infância um fato natural e universal e que não precisa ser explicitada do ponto de vista teórico. Esses textos apresentam traços comuns quanto às concepções e representações de criança que aqui é vista como adulto em potencial, como um vir-a-ser e, portanto, alguém que deve ser preparado para a assunção de funções e posições no mundo adulto. A adoção forte de referências teóricas americanas para a construção de uma proposta pedagógica para a EF implica na perspectiva da uniformização dos movimentos através da definição dos padrões motores considerados normais.

    A infância aparece nestes trabalhos analisados como a etapa na qual deve ocorrer o desenvolvimento das habilidades motoras simples que preparam a criança para as habilidades motoras complexas como o esporte, a dança e o trabalho. Nesta perspectiva apresentada, a maior contribuição da EF para as crianças deficientes parece ser o estímulo ao desenvolvimento dessas habilidades desprendendo-se daí um paradigma de normalização dos comportamentos tidos como anormais, inadequados à vida social. Os autores dos textos pertencentes à abordagem Empírico-Analítica adotam uma concepção clínica e genética da deficiência vendo a criança deficiente como possuidora de déficits -são usadas também as expressões defasagens e disfunções - de ordem biológica que são, por si só, responsáveis pelos processos de exclusão e estigmatização vivenciados por essas crianças. Na visão desses autores, parece ser uma ausência biológica o elemento que define a qualidade das interações sociais e da aprendizagem do deficiente não sendo mencionados o papel das determinações sócio-históricas e a construção social dos conceitos.

    Os textos que foram filiados à abordagem Fenomenológico-Hermeneutica (47,05%) apresentam uma nítida influência da psicomotricidade na pesquisa e intervenção dos pesquisadores e professores de EF junto a crianças com deficiência. É freqüente a referência a autores reconhecidos pelas concepções sobre a educação e a reeducação motora como Vitor da Fonseca, Jean Le Bouch, Pierre Vayer, Jean Le Camus, M. Ajuriaguerra, havendo oscilações entre as vertentes relacional e instrumental. A definição de criança apresentada nos textos referentes a abordagem fenomenológica-hermeneutica é tomada como ser inocente e puro, porém, imperfeito que deve ser educada na perspectiva do alcance da perfeição, representada pelo adulto. A organização dos dados corporais, nesse sentido, apresenta-se importante na medida em que pode garantir o alcance das habilidades psicomotoras necessárias ao processo de adaptação social e, conseqüentemente, ao trabalho.

    Esse conjunto de textos presentes na abordagem supracitada apresenta visões idealistas de criança, escola, educação, deficiência, as quais evidenciam-se na freqüente associação da criança com o prazer corporal e da percepção da infância como um tempo no qual os prazeres do corpo em ação devem ser vividos de forma intensa. Esse discurso retira a criança do seu contexto de vida idealizando um ser abstrato, desvinculado das determinações materiais e que não precisa da experiência dos mais velhos para se humanizar. Como conseqüência da defesa do direito ao prazer corporal, os autores criticam os adultos e, em especial, as instituições escolares que não permitem o lúdico, o brinquedo, o riso.

    A escola, segundo essa ótica, rouba o direito ao prazer transformando a criança em aluno. Sugere-se, em contrapartida, a introdução do prazer nas escolas especiais, as quais devem ouvir os desejos das crianças, desenvolvendo uma educação com base na felicidade e na alegria na expectativa que esses elementos, ao atuar sobre à auto-estima da criança deficiente, proporcione a ela uma espécie de auto-aceitação que contribuiria para a sua aceitação social.

    Ressaltamos a utilização de vários autores que veiculam a noção de que o prazer é uma dimensão essencial ao desenvolvimento infantil e que explicita-se nas pedagogias do lazer, do riso, da alegria. Evidencia-se aqui um paradigma de educação voltado à socialização da criança deficiente na qual a afetividade emerge como elemento mais significativo, se não único, para que essa socialização possa ocorrer desconsiderando-se a necessidade de uma discussão acerca da aprendizagem acadêmica das crianças com deficiência.

    Podemos inferir que os autores desses textos, enquadrados na perspectiva fenomenológico-hermeneutica, focalizam seu olhar nas dificuldades encontradas pelos deficientes para o estabelecimento de relações sociais e afetivas, porém, sem discutir a construção social do estigma o que acaba por transferir ao indivíduo a responsabilidade de sua exclusão social. A EF, ao assumir a função de oportunizar situações prazerosas e estimular socialização da criança deficiente através do jogo e do movimento, contribuiria para a integração social do deficiente por meio do desenvolvimento da afetividade e da socialização. Há uma tentativa, em vários textos, de minimizar as diferenças entre crianças normais e crianças deficientes ou ainda de definir de forma precisa às limitações provocadas pela deficiência ressaltando que as conseqüências para a criança também são limitadas. O trecho abaixo é ilustrativo dessa tendência "[a criança deficiente] tem as mesmas necessidades de qualquer outra, acrescida daquelas que são decorrentes do seu atraso inicial de desenvolvimento" (BLASCOVI-ASSIS, 1992, p. 309).

    A elaboração de um discurso que nega a diferença e celebra a igualdade sem que sejam consideradas as condições concretas de vida da criança deficiente e de sua família aponta, no nosso ponto de vista, para uma concepção de Educação Especial fundada no espontaneísmo e vinculada a uma perspectiva assistencialista de atendimento. O brincar aparece aqui como atividade natural da criança que, nessa ótica, não teria necessidade da presença e mediação do adulto para avançar no processo de humanização. Um outro discurso que desconsidera os determinantes sociais, econômicos e políticos para a inserção/inclusão da criança deficiente nas práticas corporais sistematizadas e na sociedade de modo geral é aquele que se orienta pela busca de uma melhoria da qualidade de vida através do exercício corporal. Assim, a função da EF seria a de estimular as crianças deficientes à descoberta de suas potencialidades alcançando, por essa via, as possibilidades de uma melhor qualidade de vida.

    Já os textos enquadrados na abordagem crítico-dialética (29,40%) têm em comum a perspectiva histórica adotando como ponto de partida a concepção da criança como ser que precisa da ajuda e interação com outros seres humanos para concretizar o seu potencial de desenvolvimento. Emana dessa concepção, a "criança como indivíduo inserido em um determinado contexto sócio-histórico-cultural" (CAPITONI, 1997, p 1.289). Nesse sentido, há um esforço por parte dos autores de contextualizar a construção histórica da deficiência e das noções de ineficiência, improdutividade e dependência que lhes são associadas. Considerando que essas visões arraigadas apresentam-se como um impedimento para que as crianças deficientes possam alcançar sucesso na vida escolar e social.

    Existem, entretanto, nos textos inseridos nessa abordagem, equívocos conceituais e metodológicos que, em certo sentido, podem ser vistos como incoerência teórica. Um dos campos no qual esses equívocos são mais evidentes relaciona-se a utilização das concepções da escola de Vigotsky, em especial na discussão acerca do papel do brinquedo no desenvolvimento infantil. Ainda no campo das referências teóricas, é comum nos textos dessa abordagem referência oriunda da psicomotricidade e da escola americana de desenvolvimento e aprendizagem motora.

    De modo geral encontramos em grande parte da produção analisada, concepções naturalizadas de criança e infância, o que indica que os discursos em prol da inclusão da criança deficiente nas aulas de EF podem estar se constituindo a partir da visão de uma criança abstrata, desvinculada do contexto da realidade concreta. A preparação para o futuro é a tônica dada sendo que o futuro aqui parece ser representado pelo momento em que a criança consegue sua inclusão na escola e na sociedade. Os textos estudados não trazem, tampouco, uma discussão acerca das teorias pedagógicas que poderiam sustentar práticas pedagógicas libertadoras para as crianças deficientes. Por isso, a visão da criança que se constitui como ser humano a partir de suas interações e relações sociais acaba por se configurar como uma idealização uma vez que, os textos não discutem quais as possibilidades concretas para que a EF escolar possa contribuir para a transformação das relações desiguais de poder que marcam as interações sociais na sociedade capitalista.

    Outra questão importante se refere à escassa discussão acerca da aprendizagem acadêmica dessa criança. Os autores dos textos que foram objeto da investigação trazem poucas contribuições para que possamos avançar na compreensão das possibilidades e limites da aprendizagem dos conteúdos curriculares específicos da EF. Prevalecem abordagens que dão prioridade à descrição de características da deficiência e do deficiente, ao uso do jogo, da dança e do movimento como fatores de socialização da criança deficiente e a discussão acerca da construção social da deficiência. Mesmo os relatos de experiência têm uma contribuição reduzida uma vez que lhes carecem rigorosidade científica

    Em uma perspectiva histórico-crítica de educação, é a aprendizagem das práticas e idéias que se desenvolvem no contexto da vida social que constituem a premissa básica para que a criança adentre e avance no processo de humanização (SAVIANI, 1999). A educação escolar, nessa ótica, tem a função explícita de transmissão do acervo cultural e cientifico disponíveis, dimensão que até o atual momento não foi estendida às crianças deficientes. Nesse sentido, o acesso da pessoa deficiente às práticas culturais sistematizadas tais como o uso significativo dos objetos e as diversas linguagens presentes no universo cultural através da mediação de uma pessoa mais experiente são elementos que podem definir uma perspectiva de educação que possa promover a ampliação das limitações impostas pela deficiência.


Conclusões

    De modo geral, a pesquisa na área da EF para crianças com deficiência, por seu caráter idealista, ainda se encontra atrelada a concepções e representações que produzem um imaginário negativo e pessimista acerca das possibilidades das crianças com deficiência alcançarem níveis cognitivos mais elaborados, o que é um ledo engano. Sob esse aspecto, os dezessete textos que foram objeto da nossa análise oferecem contribuições restritas para a inclusão educacional da criança deficiente sendo esse o grande desafio que, no momento, se apresenta para os professores e pesquisadores da Educação Física brasileira: avançar em direção a uma produção de conhecimento que possa trazer subsídios concretos para a elaboração de modelos teórico-práticos na perspectiva de concretizar a inclusão educacional de crianças deficientes.

    Em especial, é essencial que possamos superar a visão pessimista acerca das incapacidades de aprendizagem intelectual das crianças deficientes, vendo a EF escolar como componente curricular que tem enquanto função a transmissão, educação e democratização de saberes constituídos, quais sejam, aqueles relacionados às praticas corporais sistematizadas (jogo, esporte, dança, ginástica, lutas), sendo as mesmas os conteúdos curriculares a serem ensinados e apreendidos no contexto da escolarização (COLETIVO DE AUTORES, 1992).

    Nossa pesquisa de mestrado permitiu perceber que a produção publicada pelo CBCE sobre a criança deficiente é pequena se comparada ao tempo de existência e a periodicidade das publicações, o que indica, ao nosso ver, que tal problemática ainda é tratada como uma temática secundária "quase marginal" no quadro atual. Nesse sentido, as escassas referências, nos textos em questão, às teorias pedagógicas da EF podem estar indicando um certo isolamento dos professores envolvidos com a educação de deficientes em relação ao processo de discussão e reflexão que a área acadêmica, como um todo, vivencia desde a década de 1980.

    Em uma perspectiva de totalidade, a fragilidade no fazer científico exige um contínuo processo de discussão e autocrítica que devem ser favorecidos pela ampliação e melhoria da formação inicial e continuada dos professores e pesquisadores da EF e o estímulo à pesquisa sobre educação especial, bem como à divulgação de seus resultados provisórios como condições essenciais para que possa haver avanços significativos no tocante ao desenvolvimento de pedagogias que garantam o direito à educação da criança deficiente. Em nossa dissertação pudemos perceber que os textos analisados sobre a temática criança e deficiência em sua maioria apresentam confusão conceitual e fragilidade teórica.

    Percebe-se claramente a marginalização, nas grandes reflexões da área acadêmica EF, das discussões referentes a pessoa com deficiência. O que se conclui grande hegemonia de concepções naturalizantes e aistóricas de criança, infância e deficiência no contexto da produção científica da EF veiculada pelo CBCE no recorte temporal de 1978 a 1999. No conjunto de textos analisados apresenta-se ressaltada as práticas centradas na experiência direta e no prazer corporal sem avanço para níveis mais elaborados de consciência. Identificamos pouca ênfase na transmissão de conhecimento que venha proporcionar a emancipação, autonomia e senso crítico das crianças com deficiência, portanto, que oportunize que a criança deficiente alcance níveis superiores de educação e compreensão sobre o contexto histórico em que vive.


Bibliografia

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