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Expansão das atividades físicas de aventura na
natureza: análise sócio-histórica das necessidades
desencadeadas pelo processo civilizador

   
*Mestre em Ciências Sociais Aplicadas - UEPG. Integrante do Centro de Pesquisa
em Esporte, Lazer e Sociedade UFPR, Grupo de Pesquisa Esporte,
Lazer e Sociedade - UEPG e Ciências Sociais e Interdisciplinaridade - UEPG.
**Doutor em Educação Física - UNICAMP.Professor da Universidade Estadual
de Ponta Grossa; Professor do Programa de Mestrado em Ciências Sociais Aplicadas - UEPG.
 
 
José Roberto Herrera Cantorani*
cantorani@cev.org.br  
Constantino Ribeiro de Oliveira Jr.**
constantinojr@uepg.br
(Brasil)
 

 

 

 

 
Resumo
     O presente estudo tem como objetivo discutir as atividades de aventura numa perspectiva de interrelação com as necessidades de lazer e aspectos relacionados à vida em sociedade. A influência de determinados efeitos do processo de modernização e conseqüentes restrições provenientes do processo de civilização são, nesse sentido, peças fundamentais para o propósito que aqui se desenha. Dessa forma, com a intenção de melhor conhecer as bases em que vêm se estabelecendo o aumento das práticas das atividades de aventura, opera-se a tentativa de compreender e descobrir os sentidos, as relações e tendências deste fenômeno em detrimento de situações e formas de pressão evidenciadas na sociedade hodierna.
    Unitermos: Atividades de aventura. Lazer. Processo de civilização.
 
Abstract
     The present study has as a main objective to discuss the adventure activities into an inter relation perspective with the leisure necessities and aspects related to life in society. The influence of the modernization process effects and consequent restrictions provenients from the civilization process, are, in this way, fundamental parts for the proposal that happens here. This way, with a better intention of knowing the bases in which they've been establishing the increase of adventure activity practices, it the comprehensive attempt and finds out the senses, the relations and tendencies of this phenomenon to the detriment of situations and pressure ways noticed in the hodiern society.
    Keywords: Adventure activities. Leisure. Civilization process.
 

 
http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 11 - N° 100 - Septiembre de 2006

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Introdução

    Este trabalho é proveniente de um estudo que objetiva avançar na discussão sobre questões envolvendo o lazer, a sociedade e as atividades físicas de aventura na natureza1. A reflexão que segue é realizada sob a perspectiva da influência de determinados efeitos do processo de modernização e conseqüentes restrições provenientes do processo de civilização no desenvolvimento de necessidades hodiernas.

    Com o objetivo de melhor conhecer as bases em que vêm se estabelecendo o aumento das práticas das atividades de aventura2, opera-se a tentativa de compreender e descobrir os sentidos, as relações e tendências deste fenômeno em detrimento de situações e formas de pressão evidenciadas na sociedade contemporânea.

    Não nos esportes, mas, nas ramificações do turismo3, contidas na esfera daquilo que passa a ser socialmente decodificado e compreendido como atividades físicas de aventura na natureza, está o foco da investigação que aqui se desenha. Desse modo, intenta-se a construção do ideário de que o lazer, o meio ambiente e atividades de aventura na natureza têm uma ligação bastante próxima com determinados efeitos do processo de modernização e conseqüentes restrições provenientes do processo de civilização. Com base nessa discussão projeta-se a ligação entre o aumento do controle social e de suas condicionantes de vida na sociedade atual - que por sua vez, provenientes do processo de modernização e de civilização - e o aumento da diversificação e inovação de formas de lazer - entre elas as atividades de aventura.

    O estabelecimento do foco de pesquisa nas atividades de aventura desenvolvidas dentro da perspectiva de lazer - oferecido por ramificações do turismo - se dá em função destas atividades serem praticadas por pessoas comuns4, por homens, mulheres e adolescentes que, na grande maioria das vezes, podem ser identificados como sedentários. Dito de outra forma, o fato é que nos interessamos por essas atividades porque são destinadas à pessoas que vivem uma vida rotineira, com poucas oportunidades para atividades de relativa destreza física e que sejam pautadas em fortes emoções. Assim sendo, a questão é: por que pessoas deste tipo procuram por atividades com estas características?

    A primeira hipótese, e central por assim dizer, fundamenta-se justamente no tipo de vida altamente cerceado de fortes emoções, regrado e amplamente cercado de formas de controle ao qual as pessoas estão cada vez mais submetidas nas sociedades modernas. Contudo, uma outra questão surge ao se refletir sobre esta hipótese. Trata-se de uma pequena variação da primeira, entretanto, um pouco mais elaborada no sentido de ir mais a fundo não apenas nas razões do desenvolvimento de tais atividades, mas também no porquê da adesão deste tipo de pessoa a essas atividades, qual seja: o que leva pessoas comuns, acostumadas aos hábitos e comodidades da vida moderna, a se exporem à atividades dessa natureza? Em outras palavras, por que essas pessoas - apesar da grande carga de rotina e stress em suas vidas, o que corrobora na construção da primeira hipótese - uma vez habituadas ao conforto, à tecnologia e à segurança5, se expõem à atividades de risco e à aventura?

    Apesar de nos parecer central o entendimento de que a grande carga de rotina e stress presente na vida de boa parte da população das sociedades modernas responde em grande medida pela busca por atividades desta natureza, parece-nos também que isso só não dá conta de responder pela expressiva aceitação dessas modalidades como forma de lazer.


Processo de civilização e suas conseqüências

    Visando dar consistência ao pensamento de que as atividades de aventura estão diretamente ligadas à pressões variantes e provenientes do modo de vida hodierno, começamos por trabalhar com a hipótese central da primeira questão, mais precisamente as conseqüências do processo de civilização.

    É com base nessa intenção que recorremos à Norbert Elias, primeiramente à obra O Processo Civilizador6, a qual nos oferece algumas reflexões e também conceitos a respeito não apenas do processo civilizador, mas também das conseqüências que derivam desse processo ao longo de sua evolução.

    De acordo com o que vimos - e as citações do primeiro volume de O processo Civilizador servem para ilustrar este ponto o processo civilizador constitui uma mudança na conduta e sentimentos humanos rumo a uma direção muito específica. Essa obra vem nos mostrar como

[...]o controle efetuado através de terceiras pessoas é convertido, de vários aspectos, em autocontrole, que as atividades humanas mais animalescas são progressivamente excluídas do palco da vida comunal e investidas de sentimentos de vergonha, que a regulação de toda vida instintiva e afetiva por um firme autocontrole se torna cada vez mais estável, uniforme e generalizada. (ELIAS, 1993, v. 2, p. 193-194).

    O que a obra relata, no tocante ao processo civilizador, nada mais é do que o problema geral da mudança histórica. O estudo direcionado a esse processo tentou dar uma resposta ao problema de como teria surgido no mundo humano formações sociais em que nenhum ser isolado teria intencionalmente planejado e que ainda assim teriam resultado em uma instituição bastante estruturada e de grande estabilidade.

    A resposta formulada por Elias nesta mesma obra muito tem a ver com a base de sua teoria, ou seja, [...]planos e ações, impulsos emocionais e racionais de pessoas isoladas constantemente se entrelaçam de modo amistoso ou hostil (ELIAS, 1993, v. 2, p. 194). A compreensão de Elias a respeito do conceito de sociedade perpassa pela concepção de que as pessoas, através de suas disposições e inclinações básicas são orientadas umas para as outras e unidas umas às outras das mais diversas maneiras (ELIAS, 1980, p. 15). A concepção elisiana é a de que essas pessoas constituem teias de interdependência ou configurações de muitos tipos [...] (ELIAS, 1980, p. 15).

    Assim, ao longo desse processo de civilização, mudanças específicas na maneira como as pessoas se prendem umas as outras lhes modelam a personalidade de uma maneira civilizadora. Não obstante, quais foram essas mudanças e quais as conseqüências que elas disseminaram nas atuais sociedades não apenas é a preocupação de Elias ao estudar o processo civilizador como também nos é de grande valia na leitura que aqui fazemos a cerca das atividades físicas de aventura e a sua relação com as restrições na sociedade moderna.

    Dentre os fatores importantes nas mudanças apontadas por Elias estão: a passagem do controle social ao autocontrole; a difusão da pressão pela previdência e autocontrole; a diminuição dos contrastes e o aumento da variedade; a transformação de guerreiros em cortesãos; o aumento das pulsões: psicologização e racionalização; vergonha e repugnância; e as restrições crescentes à classe alta: pressões crescentes a partir de baixo.


Do controle social ao autocontrole: sua evolução, seus efeitos

    Com o intuito de formular uma resposta mais geral em relação à questão de como o processo de interdependência existente entre as pessoas modela suas personalidades rumo à civilização, Elias conclui da seguinte forma:

Do período mais remoto da história do Ocidente até os nossos dias, as funções sociais, sob pressão da competição, tornaram-se cada vez mais diferenciadas. Quanto mais diferenciadas elas se tornavam, mais crescia o número de funções e, assim, de pessoas das quais o indivíduo constantemente dependia em todas suas ações, desde as simples e comuns até as complexas e raras. À medida que mais pessoas sintonizavam sua conduta com a de outras, a teia de ações teria que se organizar de forma sempre mais rigorosa e precisa, a fim de cada ação individual desempenhasse uma função social. O indivíduo era compelido a regular a conduta de maneira mais diferenciada, uniforme e estável. (ELIAS, 1993, 2. v, p. 195-196).

    Elias salienta o fato de que tal processo depende não apenas de uma regulação consciente. Depende, no início da institucionalização desses procedimentos, de normas e instituições que exerçam pressão para uma correta e civilizada conduta. Mas, não obstante, depende do passo seguinte, que é característico das mudanças psicológicas ocorridas no curso desse processo de civilização:

[...]o controle mais complexo e estável da conduta passou a ser cada vez mais instilado no indivíduo desde seus primeiros anos, como uma espécie de automatismo, uma autocompulsão à qual ele não poderia resistir, mesmo que desejasse. A teia de ações tornou-se tão complexa e extensa, o esforço necessário para comportar-se "corretamente" dentro dela ficou tão grande que, além do autocontrole consciente do indivíduo, um cego aparelho automático de autocontrole foi firmemente estabelecido. (ELIAS, 1993, 2. v, p.196).

    Trata-se de um mecanismo que visa prevenir transgressões do comportamento socialmente aceitável. Tal mecanismo tem a sua eficiência pautada na institucionalização de medos que se tornaram profundamente arraigados. Contudo, por operar cegamente e pelo hábito, ele, com freqüência, indiretamente produzia colisões com a realidade social (ELIAS, 1993, 2.v, p. 196). Podemos pensar essas colisões como uma luta interna entre uma vontade, um impulso e a forma com se deve comportar, o seu freio.

    Este é um tipo de pressão com a qual as pessoas se vêem obrigadas a aprenderem a conviver. Este tipo de pressão varia conforme o grau de civilização das sociedades e, dentro dessas, pelo modo de vida ao qual cada indivíduo se vê submetido em virtude dos postos que possa ocupar, ou seja, uma postura que varia em detrimento da direção do processo de diferenciação social, da progressiva divisão de funções e pelo crescimento de cadeias de interdependência. Em outras palavras, todo impulso, toda ação do indivíduo tornaram-se integrados, e essa integração atua de forma a predizer as formas e padrões de conduta de cada uma das esferas ou camadas das sociedades.

    De acordo com Elias, a difusão da pressão pela previdência e pelo autocontrole é um fator bastante significativo no processo de civilização. O fato é que no processo de civilização ocorre o fortalecimento do autocontrole e, em conseqüência, a inibição de paixões e controle de pulsões.

    Uma das características que tornam clara a conexão entre pressão interna, e tamanho da mesma, à rede de interdependência, por um lado, e à constituição psicológica do indivíduo, por outro, é o que Elias vai chamar de "'ritmo' de nosso tempo" (ELIAS, 1993, p. 207).

    Esse "ritmo" nada mais é que uma:

[...]manifestação do grande número de cadeias entrelaçadas de interdependência, abrangendo todas as funções sociais que os indivíduos têm que desempenhar, e da pressão competitiva que satura essa rede densamente povoada e que afeta, direta ou indiretamente, cada ato isolado da pessoa. (ELIAS, 1993, p. 207).

    Pois bem, diante deste fato parece factível a interpretação de que quanto mais complexa for a rede ou teia de interdependência ou, em outras palavras, o estilo de vida e padrões pertinentes a este, maior o grau de pressão interna sofrida pelo indivíduo. Destaque também deve ser dado à constituição psicológica de cada indivíduo, que vai responder pela maior ou menor capacidade de trabalhar com a realidade vivida.

    Esse ritmo de nosso tempo, a grande pressão interna vivida na atualidade e a diferenciação dessa pressão ou até mesmo do tipo de pressão está também ligada ao que Elias vai chamar de Diminuição dos Contrastes e Aumento da Variedade (ELIAS, 1993, p. 210-215).

    A diminuição dos contrastes nada mais é que a difusão da civilização. A modelação das pulsões e sentimentos, as formas de conduta, que inicialmente se originam nas classes mais altas se disseminam pelas outras camadas. Assim, toda a constituição psicológica das classes baixas nas sociedades civilizadas acaba se aproximando das demais, a começar pela classe média. Contudo, se diminuem os contrastes, aumentam as variedades, as nuances entre as camadas da sociedade. Voltamos aqui à diferenciação na pressão pertinente ao estilo de vida e conseqüentes padrões de conduta.

    Para enfatizar o aumento da pressão em detrimento do processo de civilização que corresponde ao aumento do número de cadeias entrelaçadas de interdependência que evolui até ao chamado ritmo de nosso tempo, Elias vai buscar na história dados a respeito da transformação de guerreiros em cortesãos: o autocontrole que os cavaleiros corteses observavam na corte, portanto, era formado apenas por hábitos semiconscientes, muito diferentes do padrão característico quase automatizado de um estágio superior (ELIAS, 1993, p. 218).

    A estrutura do autocontrole estava aí em seu início, e se desenvolveria nos períodos seguintes através do que Elias retratou como o abrandamento das pulsões: psicologização e racionalização (ELIAS, 1993, p. 225-241).

    Com a transformação de todo o campo social, a estrutura das funções sociais e psicológicas mudou também, rumo à racionalização. Assim, de acordo com o que observamos em O Processo Civilizador,

Lado a lado com essa mudança gradual na totalidade das funções e instituições sociais ocorreu uma transformação da auto-orientação individual - inicialmente nos principais grupos da nobreza e da burguesia - na direção de um maior espírito de previsão e de uma regulação mais estrita dos impulsos da libido. (ELIAS, 1993, p. 240).

    Para complementar o ideário a respeito da racionalização, Elias vai citar a vergonha e a repugnância (ELIAS, 1993, p. 242-248). A racionalização, segundo Elias, é - nos contornos de um processo civilizador - a peculiar modelação da economia das pulsões que conhecemos pelos nomes de "vergonha" e "repugnância" ou "embaraço" (ELIAS, 1993, p. 242).

    O sentimento de vergonha, mediante o propósito de construção a que este trabalho se detém, tem uma relevância bastante grande. Veremos ao longo da construção do ideário a que nos propomos que, em virtude deste sentimento, os adultos assumem uma pressão interna bastante significativa, e que muito poucas são as oportunidades de se expressarem livres desse sentimento, fato que também é crucial na complementação do já citado propósito.

    Segundo o relato de Elias,

O sentimento de vergonha é uma exaltação específica, uma espécie de ansiedade que automaticamente se reproduz na pessoa em certas ocasiões, por força do hábito. Considerado superficialmente, é um medo de degradação social ou, em termos mais gerais, de gestos de superioridade de outras pessoas. Mas é uma forma de desagrado ou medo que surge caracteristicamente nas ocasiões em que a pessoa que receia cair em uma situação de inferioridade não pode evitar esse perigo nem por meios físicos diretos nem por qualquer forma de ataque. Essa impotência ante a superioridade dos outros, essa total fragilidade diante deles, não surgem diretamente da ameaça de superioridade física que os demais realmente representem - embora, sem dúvida, tenha suas origens numa compulsão física, na inferioridade corporal da criança frente aos pais ou mestres. Nos adultos, porém, a impotência resulta do fato de que as pessoas cuja a superioridade se teme estão de acordo com o próprio superego da pessoa, com a agência de autolimitação implantada no indivíduo por outros de quem ele foi dependente, que exerciam poder e possuíam superioridade sobre ele. De conformidade com isso, a ansiedade que denominamos de "vergonha" é profundamente velada à vista dos outros. (ELIAS, 1993, p. 242).

    Para completar a sua construção a respeito do processo civilizador Elias relata a influência das restrições crescentes à classe alta: pressões crescentes a partir de baixo (ELIAS, 1993, p. 248-262). Com esta categoria ou característica do processo civilizador Elias vai mostrar como a diferenciação entre as classes, a divisão da sociedade em classes superiores e inferiores. No que diz respeito aos membros das classes superiores, o seu comportamento social, as restrições sociais as quais estava submetido, eram realçadas também pela busca da manutenção de seu status. Nessas condições, a preservação do status elevado e das características de personalidade que os distinguia dos demais exigia uma forma de espírito de previsão, autocontrole e prudência inçados de ansiedade (ELIAS, 1993, p. 257). Este detalhe vem também somar na construção aqui pretendida, pois chama a atenção para o fato de que as classes mais altas estão mais sujeitas ao um grau maior de pressão em sua vida cotidiana.

    Com esses apontamentos sobre as características do processo civilizador buscamos retratar, pelo menos em parte, os contornos daquilo que pode ser identificado como exigências gerais da existência social do homem. Foi também uma outra intenção evidenciar que essas exigências - em um processo de desenvolvimento - vêm aumentando; se diferenciam nos vários estágios do desenvolvimento humano; e também podem ser entendidas como diferenciadas nas diversas camadas de uma sociedade moderna.


Atividades de lazer: evolução e diferenciação

    A argumentação a respeito da evolução das formas de controle e também das exigências sociais teve como objetivo fortalecer a base teórica de sustentação para uma posterior formulação de que as atividades de lazer evoluem, conforme veremos na seqüência, em detrimento desse aumento do controle e exigências sociais.

    Ao apresentar o seu estudo a respeito do processo civilizador Elias nos trás concepções que evidenciam um significativo e concomitante aumento das pressões na vida de cada indivíduo. Não obstante, ao publicar o seu estudo A Busca da Excitação, nos apresenta reflexões que argumentam a respeito das conseqüências desse aumento do controle e do autocontrole na vida das pessoas, sobre as necessidades que resultam desse processo e também sobre o papel do lazer neste contexto.

    Vimos anteriormente que, no decurso do processo de civilização, e que hoje pode ser identificado no processo de crescimento, a que os indivíduos se submetem em nossas sociedades, os seres humanos são ensinados a controlar com bastante severidade, e em parte automaticamente, certas necessidades provenientes do envio e recepção de mensagens emocionalmente significativas. Acrescentaríamos ainda que, de acordo com os relatos de Elias e Dunning (1992, p. 171), tais necessidades são tão vitais para o jovem ser humano como é a alimentação. No entanto, em nosso tipo de sociedade, os adultos, na sua vida de não lazer, têm de refrear severamente o envio de mensagens emocionais (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 171).

    A leitura que fazemos da sociedade é a de que há uma necessidade corrente de experimentação de fortes emoções, de caráter não duradouro, mimético7 e que atue na satisfação dessa necessidade que é proveniente do aumento do controle emocional na vida das pessoas adultas das sociedades hodiernas.

    Em relação a essa necessidade, que é proveniente de um processo de severa restrição comportamental, Elias e Dunning vão dizer que está ligada, inclusive, com a saúde mental das pessoas. Em suas palavras,

Seja qual for a relação que esta necessidade possa ter com outras necessidades mais elementares como a fome, a sede e o sexo - todos os dados acentuam o facto de que esta representa um fenómeno muito mais complexo, um fenómeno muito menos puramente biológico -, pode bem considerar-se que o desprezo quanto à atenção dedicada a esta necessidade constitui uma das maiores lacunas na abordagem dos problemas da saúde mental. (ELIAS; DUNNING, 1992, p. 171).

    Dito de outra forma, agora fazendo alusão a função das atividades de lazer - sobretudo as da esfera mimética - Elias e Dunning (1992, p. 137-138) vão relatar que esta função não é simplesmente, como muitas vezes se pensa, uma libertação das tensões, mas a renovação dessa medida de tensão, que é um ingrediente essencial da saúde mental.

    Da forma como entendemos, e que também acreditamos enxergar nas obras de Elias, as sociedades humanas desenvolvem formas de atividades que podem ser consideradas como contramedidas em oposição às tensões do stress que elas próprias criam. E, neste contexto, quanto maior for o nível de civilização, urbanização e sofisticação atingida por determinada sociedade ou camada de uma sociedade, tão mais diferenciados serão os meios pelos quais os seus integrantes vão se utilizar para encontrar o equilíbrio para essa tensão.

    Assim, seguindo por este raciocínio, parece-nos claro que as características das atividades específicas de lazer desenvolvidas em nossas sociedades o são em detrimento das características das necessidades individuais de lazer. Não obstante, parece-nos também que - ainda que não seja exatamente claro - podemos considerar factível o entendimento que o surgimento de necessidades individuais de lazer desenvolvidas nas sociedades mais complexas e civilizadas do nosso tempo exijam uma evolução das formas de lazer, ou seja, novas formas e ritmos de vida exigem atividades que dêem conta de satisfazer as necessidades desse novo modo de vida.

    E é aí que entram em cena as atividades físicas de aventura na natureza. Estas atividades, dentro de sua característica mimética, são responsáveis por um determinado tipo de catarse que não se verifica facilmente em outros tipos de atividades miméticas. Nestas atividades estão presentes a possibilidade de reaproximação da natureza, a condição de se vivenciar algo que está muito distante do dia-a-dia, do corriqueiro, e de experimentar tensões prazerosas a muito distantes do cotidiano das sociedades modernas, ou seja, atividades que vertem a noção de algo altamente arriscado.

    Diante deste contexto, parece-nos adequado o momento para se salientar a mimese verificada em tais atividades, ou seja, o fenômeno apresentado acontece dentro de uma esfera em que o risco é monitorado, é controlado, é amenizado. Tudo isso oferecido pelo mercado, ou seja, a possibilidade de se vivenciar tais atividades comprando um pacote turístico sem que seja ao menos necessário um conhecimento prévio e/ou mais aprofundado a respeito.

    A essa altura, quando acreditamos ter juntado argumentos suficientes que dêem base para a sustentação da hipótese referente à primeira questão, apontada no início deste trabalho, creditamos também ter alcançado fôlego para um primeiro passo em direção à resposta da segunda questão.

    As pessoas comuns - as quais são fruto da sociedade hodierna, uma sociedade vertiginosa, altamente rotineira, sedentária e de poucas oportunidades para atividades de relativa destreza física e de forte excitação emocional - como vimos, são em essência, o próprio porquê da procura por atividades deste tipo.

    Mas, apesar de todos esses fatores que evidenciam o surgimento e suprimento das necessidades expostas acima, que são centrais no ideário aqui proposto, é preciso que se diga, há ainda, em nosso entender, um outro ingrediente que se dispõe de forma bastante relevante neste processo. Afinal, essas pessoas as quais nos concentramos, as pessoas comuns como já nos referimos, acostumadas ao conforto e, sobretudo à tecnologia e à segurança, com perdão da redundância, têm na "segurança" um aspecto fundamental de suas vidas. Por que então se exporem à atividades de tamanho risco e em um ambiente hostil e absolutamente estranho.

    A verdade é que as pessoas não se largam simplesmente a essas atividades e deixam de lado toda a segurança a que estão habituadas. Nesse sentido, a tecnologia mais uma vez está presente, ou seja, a adoção destas atividades como meio privilegiado para a experimentação de fortes excitações emocionais se deve, em grande parte, à confiança no material utilizado, ou seja, a confiança na tecnologia empregada no fabrico dos materiais pertinentes a cada uma das modalidades em específico.


Considerações finais

    O estabelecimento do foco de pesquisa nas atividades de aventura desenvolvidas dentro da perspectiva de lazer -oferecido por ramificações do turismo- se deu em virtude destas atividades serem praticadas por pessoas comuns, ou seja, pessoas que são o resultado mais geral das sociedades hodiernas. A atenção às pessoas sedentárias, que vivem uma vida rotineira, com poucas oportunidades para atividades de relativa destreza física e que sejam pautadas em fortes emoções se deu em virtude de indagarmos o porquê de pessoas deste tipo procuram por atividades com características de alto risco.

    A hipótese central, nesta perspectiva, se fundamenta justamente no tipo de vida altamente cerceado de fortes emoções, regrado e amplamente cercado de formas de controle ao qual as pessoas estão cada vez mais submetidas nas sociedades modernas. Ou seja, é justamente a alta carga de rotina, pressão e stress em suas vidas que levam as pessoas a terem necessidades de viverem um tipo específico de tensão, uma tensão/excitação prazerosa, que é verificada em atividades de risco, e oferecida a sociedade na forma de atividades miméticas.

    Contudo, apesar de uma gama suficiente de dados convergirem positivamente para a argumentação sobre a existência de tais tipos de necessidades e de como estas são geradas, parecia-nos necessário discutir um pouco mais o assunto, buscar levantar o que levaria pessoas acostumadas ao conforto, à tecnologia, e à segurança - apesar da grande carga de rotina e stress em suas vidas - a se exporem à atividades dessa natureza.

    Parece-nos, diante o contexto que se apresenta, que a tecnologia, que num primeiro momento é responsável, ou co-responsável dentro de um processo de civilização, pelo afastamento do homem de atividades físicas e emocionais ligadas ao risco e a natureza; num segundo momento, esta mesma tecnologia atua de forma positiva para o estabelecimento de um novo tipo de atividade que vem propiciar ao homem viver estas emoções agora de uma forma mimética.

    As pessoas não se atiram a essas atividades sem levarem em conta fatores aos quais estão habituadas, como por exemplo, e acima de tudo, o fator segurança/confiança. Parece-nos que a adoção destas atividades como meio privilegiado para a experimentação de fortes excitações emocionais se deve, em grande parte, à confiança no material utilizado, ou seja, na confiança na tecnologia empregada no fabrico dos materiais pertinentes a cada uma das modalidades em específico.


Notas

  1. A utilização do conceito de "atividades de aventura" e não de "esportes de aventura", como mais comumente se encontra, é explicada pelo fato de ser central na pesquisa a que nos dedicamos o cidadão comum e não o atleta. Isso se deve em virtude do primeiro, na grande maioria das vezes, encontrar-se envolvido no ritmo ditado pela sociedade e ser carente de conhecimentos técnicos e de vivência motora no que diz respeito à atividades físicas de lazer.

  2. A referência que fazemos ao aumento das práticas das atividades de aventura é pautada em dados como o surgimento e aumento de vários segmentos que se destinam a essas atividades, exclusiva ou paralelamente, voltados, principalmente, para o comércio das atividades em si e de equipamentos. Em uma rápida busca na internet esse dado é facilmente comprovado. Mas, além da internet, o segmento vem tendo espaço também na televisão, o que nos leva a crer que se não houvesse compradores para o produto, este não ocuparia o referido espaço. Há ainda um outro dado, o surgimento de pesquisas acadêmicas que têm como foco diferentes aspectos deste mesmo fenômeno. O nosso objetivo, no entanto, é buscar nos aspectos sociais, no processo civilizador, os possíveis motivos para a busca por essas atividades, e principalmente, como já apontado acima, pelo fato de serem pessoas comuns a comprarem essas atividades.

  3. Para complementar a idéia, e a explicação dessa idéia, ressaltamos aqui que a atenção ao turismo, ou melhor, à ramificação do turismo que agencia as atividades de aventura se justifica por ser esta a instituição através da qual as pessoas comuns verificam a possibilidade de praticar essas atividades, ou seja, através da compra de um pacote turístico em que atividades de aventura são ofertadas. Não obstante, é oportuno também o momento para esclarecer que as atividades de aventura em questão são aquelas praticadas na natureza, ou seja, atividades como rafting, canioning, rapel, tirolesa, ou uma simples caminhada por trilhas (o trekking) que levam à cachoeiras, cânions e outros atrativos naturais. É preciso ter em mente que, para muitos, uma simples caminhada em meio à natureza é por si só um desafio, uma aventura.

  4. O termo pessoas comuns carrega em si a finalidade de evidenciar a diferença entre a grande maioria dos cidadãos, ou seja, pessoas extremamente adequadas ao sistema que, como veremos a frente, é rotineiro e gerador de pressões que anulam a espontaneidade do homem adulto, do indivíduo que, apesar do quão envolvente é o sistema social, possui atividades esportivas de satisfação emocional.

  5. A tecnologia, as formas de controle alcançadas pelo seu avanço, principalmente, neste caso, as formas de controle do meio natural, atuaram, paulatinamente, e em conjunto com outros aspectos provenientes desse mesmo avanço tecnológico, como por exemplo, a sofisticação dos modos de vida na evolução das sociedades, em prol do afastamento do homem do convívio da natureza. Dessa forma, como já esboçado acima, o simples fato de estar neste meio já é uma aventura para muitos. Cabe ainda acrescentar que controle aqui citado se refere ao domínio que o homem possui e cada vez mais adquire sobre o meio que ocupa, o ambiente que o rodeia, transformando-o e adequando-o às suas necessidades. O controle aqui - apesar da evidência, achamos conveniente registrar o esclarecimento - difere-se daquele que, mencionado anteriormente, diz respeito ao controle exercido ao próprio homem, ou pela sociedade, ou por ele próprio.

  6. Consideramos conveniente esclarecer que a obra O Processo Civilizador é considerada como um todo, ou seja, o volume 1 e 2. Contudo, para auxílio na construção das idéias aqui pleiteadas, o volume 2: Formação do Estado e Civilização, principalmente em função da sinopse contida neste volume, é de substancial valia em virtude de sintetizar as idéias e conceitos trabalhados pelo autor ao longo da exposição de seu trabalho de pesquisa.

  7. O termo mimético, no seu sentido literal é imitativo. No entanto, é utilizado por Elias e Dunning num sentido mais alargado, figurado. Nesse aspecto, constitui-se em uma característica comum em todas as atividades de lazer classificadas com essa denominação, atividades que são capazes de propiciar a sensação, a vivência do risco sem deixar a esfera do controle, ou seja, é viver o risco, mas um risco controlado; e socialmente permitido, uma vez que não perturba o andamento das coisas sérias da vida social. A excitação mimética, na perspectiva individual e social, é desprovida de perigo e normalmente tem um efeito catártico. O conceito de catarse foi buscado em Aristóteles que, por sua vez, formulou a sua interpretação a partir de fatos estudados na fisiologia. A palavra catarse vem do conceito médico ligado ao expulsar de substâncias nocivas do corpo, uma limpeza do corpo por meio de uma purga. Aristóteles propunha em sua tese, num sentido figurado, que a música e a tragédia provocavam algo similar nas pessoas. Para uma visão mais detalhada a respeito dos conceitos de mimese e catarse é indicado verificar os dois primeiros capítulos de ELIAS, N.; DUNNING, E. A busca da Excitação. Tradução Maria Manuela Almeida e Silva. Lisboa: DIFEL, 1992.


Bibliografia

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  • ELIAS, N., DUNNING, E. A Busca da Excitação. Tradução Maria Manuela Almeida e Silva. Lisboa: DIFEL, 1992.

  • ELIAS, N. Introdução à sociologia. Tradução Maria Luiza Ribeiro Ferreira. Lisboa: Edições 70, 1980.

  • ______. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 1 v.

  • ______. O processo civilizador: formação do estado e civilização. Tradução Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 2 v.

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