Prof. Dr. Antonio Jorge G. Soares1 / Prof. Dr. Hugo Rodolfo Lovisolo2 (Brasil)
Faremos neste texto dois movimentos. No primeiro, tentaremos apresentar a aliança no modo de pensar de Graciliano que o levou a realizar profecias erradas sobre o futebol. No segundo, mostraremos que, talvez, o texto viesse a ser melhor entendido se o futebol fosse visto meramente como instrumento retórico para Graciliano expor suas críticas românticas à cidade, e suas críticas ao comportamento político das elites brasileiras -do coronel do sertão ao presidente da república. É importante esclarecer que o ensaio aqui apresentado se propõe a analisar esta crônica de Graciliano nos limites da autonomia literária que o texto possui. Não se pretende verificar as interfaces de Traços a Esmo com a obra de Graciliano e, muito menos, com a personalidade do romancista. O leitor poderá, ao longo da análise, observar que a retórica romântica utilizada por Graciliano é a forma de analisar "velhos" problemas sociais, políticos e culturais, ainda presente entre nós.
Corpo flácido, preguiça e alienação Graciliano argumenta que o futebol é fogo de palha porque a cultura física "está entre nós" totalmente abandonada. Apenas teriam esportes de caráter regional, que são batizados com "língua de preto", mas que são abandonados pela "débil mocidade". O que existe na cultura dos jogos "esportivos" estaria apenas nas brincadeiras de "sapatadas, cascudos e safanões" que, "quando crianças trocamos uns com os outros". Afirma que as crianças não fazem nenhum exercício. Por essa razão, conclui,
"...somos, em geral, franzinos, mirrados, fraquinhos, de uma pobreza de músculos lastimável. (...) fisicamente falando, somos uma verdadeira miséria. Moles, bambos, murchos, tristes-uma lástima! Pálpebras caídas, beiços caídos, braços caídos, um caimento generalizado que faz de nós um ser desengonçado, bisonho, indolente, com ar de quem repete, desenxabido e encolhido, a frase pulha que se tornou popular: Me deixa". O autor apresenta a fotografia da sociedade em que vive. Reclama que "entre nós", por ignorância ou por falta de decisões políticas, não se tem ainda uma educação para o corpo, o que torna o perfil físico da população doente e preguiçoso no adágio "me deixa". Graciliano parece aproximar-se da velha máxima de Rousseau: um corpo débil comanda o indivíduo, um corpo forte é comandado. Admoesta, "precisamos fortalecer a carne que a inação tornou flácida, os nervos, que excitantes estragaram, os ossos que o mercúrio escangalhou". Chama também a "mocidade de débil" por abandonar as tradições e as coisas regionais. A tensão do interior vs. capital, nacional vs. estrangeiro é retomada, mais à frente, por Graciliano e por nós. No mesmo contexto, diz que a única parte do organismo que desenvolvemos são as orelhas, "graças aos puxões maternos", concluindo que ter orelhas grandes não serve para muita coisa, na medida em que, o burro, possui "consideráveis apêndices auriculares, o que não impede que o considerem, injustamente, o mais estúpido dos bichos". A ironia agressiva retoma a questão da falta de consciência crítica da população, o perfil corporal debilitado, enfim, faz o seu diagnóstico da realidade regional e brasileira.
Futebol não se adapta a estas boas paragens do cangaço: interior e capitais A resposta pode ser encontrada no modo de pensar ou, se preferir, na mecânica de sua argumentação. Seu modo de argumentação é de cara funcionalista, como grande parte da reflexão inspirada nocientificismo de seu tempo, e baseia-se na correspondência entre uma realidade nacional ou regional e uma instituição. Ademais, congela a tradição e sua renovação, fecha os processos de resignificação e, por último, opera, formalmente, ignorando as características singulares do objeto a ser integrado, no caso, o futebol. Temos, assim, na aliança entre funcionalismo com uma visão mecanicista da tradição e a ignorância das singularidades do esporte em pauta, o motor de seu erro. Merece ser comentada e mostrada essa aliança, pois, ainda hoje, continua sendo a base de entendimentos da dinâmica social e, em particular, da dinâmica da inovação e dos esportes. Entendemos que seu pensamento é funcionalista ou adequacionista porque: a) parte do pressuposto de que o futebol, ou qualquer outra instituição estrangeira, apenas pode ser incorporada se é funcional, adequada ou se corresponde com a índole do povo ou da cultura receptora, com suas necessidades ou demandas4 , e b) quando o lugar a ocupar não esteja tomado por outro mais antigo, de cunho indígena. Há, então, uma lógica da adaptação que remete a duas condições, que indicam apenas como possíveis: o preenchimento de necessidades ou o desenvolvimento de potencialidades preexistentes. Não há, portanto, lugar para o novo, para a ruptura, para a inovação em sentido estrito. O passado cultural escreve o presente. A tradição carrega-se das forças do determinismo e apenas poderíamos aprofundá-la, desenvolvê-la e fazê-la crescer. O observador, neste caso Graciliano, sabe quais são as características da cultura, de sua cultura, e, portanto, pode diagnosticar como e quando um costume ou instituição estrangeira pode ser assimilada. Temos então a junção de um romanticismo, que pensa cada cultura como singular, com um cientificismo funcionalista, que acredita que o conhecimento é base da predição. Se nos remetermos aos debates mais simplificadores sobre a questão cultural, na temática da globalização, poderiámos ver o espírito das idéias de Graciliano ainda presente entre nós. Embora o princípio adequacionista ou funcionalista possa ser aceito como guia de pesquisa, torna-se meramente formal quando as singularidades de ambos lados - funções ou correspondências - não são estabelecidas. Na verdade, Graciliano acredita que conhece as singularidades culturais dos povos dos sertões. Apresenta essas singularidades como evidentes, ele está no sertão, publica no local, é do lugar, o que o faz sentir-se com absoluta autoridade para dizer-nos como o povo é. Contudo, ele não pensa nem o futebol, nem suas possibilidades de difusão na cultura dos sertões. O crítico Graciliano, neste caso, é movido pelo preconceito. Apenas descreve o futebol como esporte estrangeiro, que pode ser moda passageira, e aceito somente no clima desorganizado das cidades. Graciliano ignora também aquilo que hoje é mais ou menos evidente: o magrinho orelhudo, o baixinho de pernas tortas, o grandalhão desengonçado, o atarracado forte, o apolíneo e até o barrigudinho podem ser craques de futebol. Isso porque a dinâmica do futebol permite que as desigualdades corporais sejam compensadas por outras habilidades, algumas das quais têm mais a ver com a "cabeça", a visão e os pés, do que Graciliano podia entender, pois, já tinha sua opinião preconcebida. Ou será que para Graciliano o futebol é mero instrumento para outra coisa?
Do futebol à crítica da cidade: liamba e drogas pesadas "O futebol não pega, tenham a certeza. Não vale o argumento de que ele tem ganho terreno nas capitais de importância", profetizava Graciliano. Aqui, o autor se situa na fronteira, não existe uma nação no Brasil da época, existem brasis com características culturais totalmente diferentes. Para ele, o argumento de que nas capitais o esporte tem conquistado espaço não vale, na medida em que "as grandes cidades estão no litoral; isto aqui é diferente, é sertão", afirma enfaticamente. Assim, a imagem romântica que permeia o texto é a de que a identidade do sertão é sólida, enquanto a identidade citadina é fluida, principalmente, por sua característica multirracial. Observemos o texto: "As cidades regurgitam de gente de outras raças ou que pretende ser de outras raças5 ; nós somos mais ou menos botocudos, com laivos de sangue cabinda ou galego". A idéia de que a identidade da cidade é fluida, faz aparecer, mais uma vez, figuras presentes em Rousseau e na tradição romântica, quando afirma que as pessoas podem simular sua origem racial e, portanto, social. A lógica é a de que a multidão é anônima, ela esconde as "origens". Por outro lado, ao afirmar "nós somos mais botocudos" com traços de sangue cabinda e galego, o autor está afirmando que são reconhecidas as origens da identidade cultural e étnica no sertão: são nativos (botocudos, indígenas) com sangue africano (Angola, Região Cabinda) e galego. A crítica, de direção romântica, continua quando o autor descreve que até os vícios do sertão são mais simples ou talvez mais "puros". Para Graciliano, na cidade os vícios com drogas são extremamente sofisticados, enquanto no sertão a droga é a liamba, a maconha (observe-se, de passagem, que antigos são os "problemas" apresentados como novos). Isto indica que, até nos problemas sociais, como a droga, existe descompasso entre a cidade e o campo. "Nas cidades os viciados são elegantes absorvem o ópio, a cocaína, a morfina; por aqui há pessoas que ainda fumam liamba", afirma Graciliano. A forte identidade do sertão não deixa, portanto, que um objeto cultural desvinculado do contexto seja apropriado (a liamba ou maconha seria portanto nativa do sertão?). A cidade, por ser multirracial, e consequentemente multicultural, tem identidade frágil (e até poderia não existir?). Essa é uma das causas que leva os citadinos a absorverem qualquer nova moda ou prática cultural, nesta visão onde Graciliano antecipa que "estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho. O futebol, o boxe, o turfe, nada pega." À idéia sobre a profundidade das raízes culturais do sertão, opõe-se a superficialidade que compõe o perfil da população citadina. O futebol aparece, portanto, no contexto de Traços a Esmo para servir de instrumento para a sua crítica romântica da cidade. O futebol, assim, poderia ser pensado como mero pretexto para o exercício da crítica de Graciliano à vida da cidade.
Crítica às relações sociais e políticas: a rasteira é o esporte nacional
Ao final da crônica o autor retoma esta idéia de que a força e os músculos devem ser desenvolvidos.
"Desenvolvam os músculos, rapazes, ganhem força, desempenem a coluna vertebral. Mas não é necessário ir longe, em procura de esquisitices que têm nomes que vocês nem sabem pronunciar. Reabilitem os esportes regionais, que aí estão abandonados: o porrete, o cachação, a queda de braço, a corrida a pé, tão útil a um cidadão que se dedica ao arriscado ofício de furtar galinhas, a pega de bois, o salto, a cavalhada e, melhor que tudo, o cambapé, a rasteira. A rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência! Todos nós vivemos mais ou menos a atirar rasteira uns nos outros. Logo na aula primária habituamo-nos a apelar para as pernas quando nos falta a confiança no cérebro - e a rasteira nos salva." Graciliano critica as relações políticas e de outras esferas sociais quando afirma que os jovens devem aprender a rasteira e não o futebol. A rasteira é o esporte nacional. Assim, este "esporte" teria muito mais utilidade na sociedade em que vivemos. Sua crítica se universaliza, pois do presidente da República ao coronel da roça todos praticam a rasteira. Assim, para o romancista, os argumentos justos e inteligentes não são de muita valia aqui nesta terra onde impera o poder autoritário de uma elite ignorante. Seria este mais um aspecto do romantismo de Graciliano? Às luzes da razão, os argumentos justos e inteligentes não se adequariam à cultura brasileira. A ironia aparece como manto de seu desencanto e o romanticismo como refúgio. Concluindo, a leitura de Graciliano sobre a realidade social brasileira de sua época é interessante como crítica as relações escusas e malandras que se travavam na vida pública. É interessante para que sintamos que muitas coisas que o incomodam em seu tempo ainda estão presentes nos debates da política nacional. Ele aponta que não existe possibilidade de cidadania numa sociedade onde as regras e a justiça funcionam como fachada e a rasteira é o comportamento nacional. Entretanto, Graciliano falhou em sua profecia ao afirmar que o futebol não "pegaria" no sertão. Falhou porque não analisou que o futebol, em sua estrutura de jogo, apresentava um modelo mais democrático que as próprias instituições brasileiras de sua época. Não atentou que as regras do jogo de futebol são para todos. Não quis ver, mas sabia, que os "sertões" também existiam nas periferias das cidades. Por exemplo, os problemas das endemias e epidemias que atingiam o sertão também atingiam as cidades, como podemos ver na emblemática frase do médico Afrânio Peixoto que "os sertões" no Distrito Federal começavam quando terminava a Avenida Central, hoje chamada de Avenida Rio Branco.6 E apesar de existirem "sertões" nas periferias do Rio de Janeiro, será que Graciliano, em 1921, ignorava a expansão do futebol nos clubes de zona norte que se formavam em cada esquina, em cada botequim, nesse período? Será que Graciliano desconhecia a popularização do jogo de futebol, que se materializava através da presença de operários subalternos competindo e participando de times e campeonatos com membros das elites? Ignoraria que o futebol ocupava os terrenos baldios no Distrito Federal? Na verdade, um homem culto como Graciliano não podia ignorar que essas informações estavam presentes nos jornais pelo menos desde 1915.7 O futebol colou e não foi fogo de palha. Talvez por ser um dos poucos espaços sociais que nasceu para as elites e do qual as camadas populares se apropriaram rapidamente, reivindicando o direito de igualdade diante do jogo de futebol, valor esse que não existia em outras esferas sociais. "Colou", talvez, por ser uma das poucas experiências de participação cultural democrática numa República que se formou sem permitir a participação popular na esfera altamente significativa da política.8 O futebol "colou" não porque se tornou um filho híbrido, embora o discurso sobre o futebol tenha ajudado a construir sua identidade nacional, seu perfil autóctone. "Colou", talvez, para se contrapor às críticas desencantadas do romancista à sociedade e à cidade?
Año 3, Nº 10. Buenos Aires. Mayo 1998 http://www.efdeportes.com |