Prof. Dr. Jocimar Daolio (Brasil) Faculdade de Educação Física - Universidade Estadual de Campinas
Resumo Mais uma vez estamos diante de uma Copa do Mundo de Futebol e o país prepara-se para esse evento de uma forma mais intensa do que faria em qualquer competição de outra modalidade esportiva. Nesse momento, podemos confirmar a importância que o futebol possui no país, ocupando o papel de esporte Nº 1, ou paixão nacional. É o chamado esporte bretão que mais movimenta as massas, mobilizando a energia torcedora de cada um dos brasileiros. Numa época de Copa do Mundo, é o futebol que acaba atualizando e renovando o espírito de nação, aliás, tão pouco praticado ultimamente pelo sofrido povo brasileiro. Aí surge a pergunta que intriga a todos os estudiosos e torcedores desse esporte: como foi possível uma modalidade esportiva surgida na Inglaterra, trazida ao Brasil em 1885, ter se tornado já nos primeiros anos do século XX uma prática extremamente popular? Essa popularização é ainda mais impressionante quando lembramos que a divulgação de eventos esportivos era muito limitada, uma vez que a televisão, hoje a grande responsável pela transmissão de espetáculos esportivos, ainda não existia. De fato, o futebol é o principal esporte nacional, seu estilo de jogo é referência mundial e os principais jogadores brasileiros são ídolos em todas as partes do planeta, sendo disputados por equipes de vários países. Ronaldinho talvez se constitua no principal atleta do mundo na atualidade. Da mesma forma como o foram, retrospectivamente, Romário, Zico e Pelé. Como todos sabem, o futebol chegou ao Brasil por meio de jovens de classe alta e as primeiras equipes apareceram nos clubes cujos sócios representavam a elite da sociedade da época. Entretanto, já nos primeiros anos deste século, começaram a surgir equipes de futebol não pertencentes a colégios, fábricas ou clubes sociais de elite, tais como a Ponte Preta, em 1900, o Corinthians, em 1910, além de outros. Era o início da tomada do futebol pela população brasileira, não apenas os representantes da classe alta. Em 1923, no Rio de Janeiro, o Vasco da Gama venceu o campeonato estadual com um time composto por negros e mulatos - e pobres -, fato que incomodou dirigentes e torcedores que ainda tentavam manter o futebol como um esporte branco e de elite. Era a vitória da técnica dos jogadores populares sobre a imposição elitista ainda presa à tradição britânica. Em 1933, foi adotado o profissionalismo, com grande resistência daqueles que ainda pretendiam um certo purismo no futebol brasileiro. O futebol brasileiro alcançava nessa época um estrondoso sucesso nacional, escapando ao controle de dirigentes de clubes ou diretores de escolas estrangeiras ou donos de fábricas para ser praticado nas praias, campos de várzea, enfim por todo o país. Já se via grandes platéias assistindo a jogos de futebol. A terceira Copa do Mundo de Futebol, realizada na França, consagrou o estilo de jogo brasileiro, levando o país à terceira colocação na competição, destacando justamente jogadores negros como Domingos da Guia e Leônidas da Silva, estrelas principais dessa equipe. Várias explicações podem ser atribuídas a essa popularização do futebol brasileiro. Uma delas seria o alto contingente negro na população nacional e a facilidade desta raça numa modalidade esportiva que tem nos pés seus principal instrumento de ação. Assim, seria próprio dos negros uma disponibilidade corporal que os levaria a praticar atividades físicas rítmicas de forma mais coordenada. Nessa linha de raciocínio, explica-se também a prática da capoeira, do samba e de outras danças originárias do continente africano. Os defensores dessa teoria defendem as vantagens atléticas dos negros em competições esportivas, utilizando-se de vários jogadores negros como exemplos, destacando-se, dentre ele, Pelé. O problema dessa teoria é que ela remete a explicação da popularização do futebol no Brasil para o componente biológico da população negra, como se houvesse um gene para o futebol. A relação entre população negra e a prática do futebol existe, mas obviamente deve-se, não à dimensão congênita, e sim à maior concentração de negros e mulatos nas camadas populares. Foi isso que se verificou com o Vasco da Gama, que teve que admitir jogadores negros para conquistar o campeonato do Rio de Janeiro de 1923. É ilustrativa aqui a lembrança de que, por essa época, alguns negros tinham que ser embranquecidos com pó de arroz a fim de não parecerem tão negros quanto eram e, assim, serem aceitos pelos sócios brancos dos clubes. Uma outra linha de explicação para a popularização do futebol brasileiro seria a facilidade de prática desse esporte, quer em termos de regras, como em termos de espaço e equipamentos. De fato, as regras do futebol são de fácil compreensão em relação aos outros esportes. Sua prática pode se dar em qualquer lugar - campo, quadra, praia, terreno baldio, rua - e a bola, o único material obrigatório, pode ser representada por uma bola de meia, de plástico, uma lata, uma tampinha etc. Com uniforme completo ou não, com bola de couro ou não, em um campo demarcado ou não, todos jogam futebol. Entretanto, essa facilidade de prática do futebol, se pode ser considerada facilitadora para a popularização, não parece ser absoluta para podermos compreender a grande fama deste esporte no país, uma vez que outras modalidades esportivas teriam chegado ao país na mesma época que o futebol, exigindo também poucos implementos e regras de fácil compreensão. De qualquer forma, não parece promissor explicar o futebol pelo que o diferencia das outras modalidades. Nem explicação biológica (as vantagens da raça negra), nem explicação funcionalista (a facilidade da prática do futebol). Sem entrarmos no mérito das duas teorias citadas acima, parece ter havido uma combinação entre o código do futebol e o contexto cultural brasileiro. Em outros termos, o futebol demandaria um estilo de jogo, uma exigência técnica, uma eficácia e uma eficiência, que se adequaram às características culturais do povo brasileiro. Assim, o novo esporte que chegava da Inglaterra não oferecia apenas momentos lúdicos de lazer aos seus praticantes, mas permitia principalmente a vivência de uma série de situações e emoções típicas do homem brasileiro. Isso explicaria o alto poder simbólico que o futebol foi adquirindo ao longo deste século, passando a representar o homem brasileiro, da mesma forma que o fazem outros fenômenos nacionais, como o carnaval, por exemplo. Basta observarmos o quanto o futebol está presente em nossas vidas. Quantas músicas retrataram o futebol; quantos filmes, peças de teatro e novelas tiveram o futebol como personagem principal ou como cenário para suas tramas; quantas horas diárias a imprensa televisiva e radiofônica gastam com o futebol; quanto espaço diário de jornal é dedicado a esse esporte, em detrimento da cobertura de outros; quantas emissoras de rádio transmitem o mesmo jogo nas tardes de domingo. A final do campeonato brasileiro de futebol de 1997 entre Vasco da Gama e Palmeiras levou ao Maracanã mais de 100.000 torcedores, além de muitos outros que acompanharam o jogo pela televisão, ao vivo, ou pelas retransmissões posteriores. Regularmente muitos torcedores acompanham seu time, chegando a viajar para apoiar seus jogadores. Um dado da grandeza dos números do futebol brasileiro é a afirmação constante de que um estádio com 10.000 pessoas estaria vazio. Ora, em qual outro esporte um contingente de torcedores como este seria considerado pequeno? Essa afirmação parece decorrência da grandeza de construção dos estádios de futebol espalhados pelo Brasil, muitos deles, de tão grande que são, jamais têm sua lotação esgotada. É interessante observar como nosso cotidiano está impregnado de termos futebolísticos, tais como "pisar na bola", "fazer o meio campo", "dar um chute", "bater na trave", "fazer um gol de placa" e assim por diante. Essas gírias são utilizadas por todos, mesmo aqueles que não são torcedores fanáticos. O fato é que essas expressões foram incorporadas pela sociedade brasileira, tendo claro significado no cotidiano de todas as pessoas. Um outro exemplo da popularidade do futebol é a fidelidade dos torcedores aos seus times. Ainda que a fase não esteja boa ou que a equipe caia para a segunda divisão, o torcedor não muda de time. Sofre com ele, acreditando em dias de sucesso, tornando-se ainda mais fanático. No Brasil, essa fidelidade vem desde o dia do nascimento, quando o garoto recebe um nome, uma religião e um time de futebol para o qual vai torcer a vida toda. Fidelidade que está expressa na porta do quarto da maternidade, quando os pais penduram um par de chuteiras e um uniforme em miniaturas, representando o time de futebol da família. Ao longo da infância, há um contínuo processo de inculcação de valores e hábitos positivos sobre o time da família e negativos em relação às equipes adversárias. Assim se aprende no nosso país a torcer por uma determinada equipe de futebol, diferentemente das equipes de voleibol ou basquetebol que, como representantes de empresas, mudam de nome a cada temporada. Para explicar o papel que o futebol representa no Brasil, estamos defendendo que houve uma combinação entre as exigências técnicas do futebol e as características sócio-culturais do povo brasileiro. O futebol seria, ao mesmo tempo, um modelo da sociedade brasileira e um exemplo para ela se apresentar. Em outras palavras, o futebol constituir-se-ia, por um lado, numa imagem da sociedade brasileira e, por outro, num exemplo que daria a ela um modelo para se expressar. O homem brasileiro comportar-se-ia na vida como num jogo de futebol, com chances de ganhar ou perder - e às vezes empatar -, tendo que se defrontar com adversários, tendo que respeitar certas regras, mantendo respeito por uma autoridade constituída, jogando dentro de um tempo e de um espaço, marcando e sofrendo gols, fazendo jogadas de categoria e cometendo erros fatais. Após uma derrota, haveria sempre a chance de se recuperar no próximo jogo. É nesse sentido que Roberto DaMatta - um estudioso do futebol como fenômeno cultural brasileiro - afirma que cada sociedade tem o futebol que merece, pois deposita nele uma série de questões e demandas que lhes são relevantes. Assim, o futebol brasileiro não é apenas uma modalidade esportiva com regras próprias, técnicas determinadas e táticas específicas; não é apenas manifestação lúdica do homem brasileiro; nem tampouco é o ópio do povo, como preferem alguns. Mais que tudo isso, o futebol é uma forma que a sociedade brasileira encontrou para se expressar. É uma maneira do homem nacional extravasar características emocionais profundas, tais como paixão, ódio, felicidade, tristeza, prazer, dor, fidelidade, resignação, coragem, fraqueza e muitas outras. Pois não é no futebol que o torcedor machão chega às lágrimas, tanto de alegria como de tristeza? Não é no futebol que a gente aprende que após uma seqüência de derrotas virá a redentora vitória? Não é no futebol que se aprende que não se pode comemorar antes que o juiz apite o final do jogo? Não é o futebol que ensina que não se pode entrar em campo de salto alto? Não é o futebol que ensina que não se deve subestimar o adversário? Não é o futebol que por vezes faz todas as emoções extrapolarem desordenadamente levando a confrontos físicos com torcedores adversários? Com todas as contradições possíveis, o futebol brasileiro é uma forma de cidadania. Nesse sentido ele não é bom nem mau, certo ou errado, expressão generosa do povo brasileiro ou seu ópio. Constitui-se numa forma do homem brasileiro se expressar. É, portanto, dinâmico, por refletir a própria sociedade brasileira. As manifestações dentro de um estádio de futebol, quer as da torcida, quer as dos jogadores, ou as dos dirigentes e jornalistas, não podem ser analisadas de forma desvinculada de todas as outras questões nacionais. Nesse sentido, a violência dos torcedores, por vezes exacerbada, não pode ser explicada de forma simplista como manifestação de alguns marginais, como querem alguns jornalistas esportivos. Ela constitui-se em expressão da violência da sociedade brasileira por vezes reprimida em outras ocasiões. Nesse sentido a questão mais oportuna parece ser: o que vem acontecendo com a sociedade brasileira ultimamente que tem gerado tantas expressões de violência nos estádios de futebol?
Año 3, Nº 10. Buenos Aires. Mayo 1998 http://www.efdeportes.com |