Plínio José Labriola de C. Negreiros (Brasil)
Resumo
Ao mesmo tempo, o futebol já era o esporte que mais apaixonava aos brasileiros, capaz de reunir grandes multidões. Dessa forma, este texto pretende apresentar algumas pistas acerca do relacionamento entre o futebol e a construção da identidade nacional no Brasil, especificamente a partir dos anos 30. Isto será feito com o nosso olhar dirigindo-se para um evento especial dentro da história do futebol no Brasil — a participação dos brasileiros na Copa do Mundo de 1938. Mostraremos como o futebol foi sendo articulado com a sociedade brasileira, a ponto de fazer daquela competição esportiva um momento de reforço na construção da identidade nacional. E apesar de não ser possível detectar um projeto claro das várias esferas do poder público no sentido de utilizar o futebol enquanto um legitimador da ordem política vigente, torna-se perceptível como a ausência desse projeto formal não impediu que todos os fenômenos que envolviam o futebol desse período, prestassem uma sólida colaboração no sentido de reforçar a idéia da construção de uma identidade nacional. De meados da década de 10 até os fins dos anos 20, muita coisa se transformou no futebol. Este tornou-se um esporte muito mais popular, abrangendo a maior parte do país, apesar do domínio dos paulistas e cariocas. E o aumento da popularidade do futebol ficou devendo a muitos fatores, entre eles: o processo de metropolização de algumas cidades, que fez do futebol um esporte especial, pois cumpria o papel de adaptar a população urbana ao ritmo industrial que se impunha; o aparecimento e a expansão da radiodifusão, que permitiu ao futebol chegar a mais pessoas e a lugares mais distantes; além das transformações na imprensa esportiva escrita, que aproximou ainda mais os torcedores do futebol, e mais do que isso: a imprensa esportiva soube promover o futebol. Mário Filho no Rio e A Gazeta em São Paulo são bons exemplos. É a partir dos anos 20 que as multidões se farão ainda mais presentes aos estádios. Também apareceram as manifestações populares em razão de vitórias importantes, como era o caso de competições interestaduais; uma vitória carioca em São Paulo resultava, por exemplo, em uma grande recepção preparada pelos torcedores do Rio, que tinha início já na estação de trem. Vale reafirmar que a imprensa tinha um papel importante na motivação dos torcedores. Na preparação da Copa de 38, esse lado da imprensa sobressaiu. Ocorreu um sistemático envolvimento de periódicos, objetivando aproximar os torcedores das questões organizacionais do futebol. Em São Paulo, essa tarefa foi aceita com muita naturalidade pela Gazeta, que produzia um suplemento esportivo semanal, A Gazeta Esportiva. Assim, no início de abril de 1938, quando a seleção brasileira de futebol já se preparava para disputar a Copa do Mundo na França, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), lançava uma campanha, que imediatamente foi apoiada pela Gazeta. Assim Thomaz Mazzoni, o principal cronista esportivo desse jornal,1 apresentava a campanha:
"A 'Campanha do Selo', a tão bem inspirada iniciativa, teve um sucesso invulgar, ao se iniciar há dias, no Rio, está quase esgotada a emissão de 100 mil selos. Com essa campanha os afeiçoados podem se interessar diretamente pela viagem da nossa seleção, pois adquirindo um selo o 'torcedor' faz sua fezinha de ir também à 'Taça do Mundo'. (...) Este artigo é muito significativo, com duas idéias recorrentes: a seleção precisava do torcedor para vencer na França e, que alguns torcedores, graças ao seu patriotismo, seriam os felizes sorteados. Ao mesmo tempo, outra questão emergia: ao arrecadar fundos para financiar o conforto dos jogadores brasileiros, teria uma finalidade patriótica, pois poderia levar o time brasileiro a tão sonhada vitória. E o mais importante: a responsabilidade do sucesso, ou não, da seleção brasileira, passava, em parte, para as mãos dos torcedores. Ser patriota era comprar o selo. No fundo, Thomaz Mazzoni entendia a participação brasileira na França como um evento que deveria, ou mesmo poderia, levar o nome do Brasil ao exterior, principalmente à "civilizada" Europa. Assim, ajudar a CBD a proporcionar conforto aos jogadores brasileiros, significava, em última instância, um ato patriótico, já que o Brasil seria reconhecido no Velho Mundo como vitorioso. O futebol, ao mostrar a sua organização, o talento e a disciplina dos jogadores, estaria mostrando o povo brasileiro. Enfim, o futebol enquanto uma vitrine do Brasil. Mas não caberia apenas aos torcedores ajudarem na participação do selecionado nacional na Copa da França. A diretoria da CBD entendia que o apoio do poder público, assim como do empresariado, era fundamental e justo, já que não se tratava de uma disputa esportiva qualquer. Dessa forma, podemos encontrar nas páginas dos periódicos as justificativas para que o apoio material à delegação esportiva brasileira fosse o mais amplo possível:
"O comparecimento do Brasil ao certame do Mundo é o maior cartaz do momento no esporte brasileiro. Deseja-se, de fato, que desta vez o nosso pais atue na 'Taça do Mundo' com todas as suas melhores possibilidades. Nenhum esforço está sendo poupado. Deseja-se dar à nossa delegação o maior apoio moral e material possível, para não só ser digna do nosso valor futebolístico nos campos da França, como fazer, na Europa, uma grande e eficiente propaganda do Brasil. (...)"3 Se para a CBD os benefícios da ida do futebol brasileiro seria do país como um todo, a contribuição deveria ser generalizada. Assim, ainda segundo o noticiário da Gazeta:
"(...) A percepção dos dirigentes da CBD, uma entidade de caráter privado, era de que o futebol já havia a muito ultrapassado os limites do esporte, tendo adquirido um significado que obrigava todos os setores da sociedade brasileira a contribuir materialmente para uma presença digna do futebol brasileiro na Europa. Na prática, a CBD co-responsabilizava todos os brasileiros, seja do setor público ou privado, já que os ganhos, supostamente, seriam para todos, com a propaganda que seria feita em terras européias. Assim, esse campeonato de futebol colocava em jogo os próprios destinos da nação, ao menos por duas razões. De uma lado, a imagem do Brasil seria apresentada para vários povos europeus, que poderiam ter contato com o atual estágio de desenvolvimento do país, ou, conforme expressão da época, poderiam conhecer os níveis de progresso atingidos pelo país. Por outro lado, estaria em jogo a capacidade de organização e de envolvimento da população brasileira dentro desse processo. Ao contrário de outras disputas esportivas, não bastava o simples ato de torcer; ao torcedor caberia novas tarefas, como a de financiar a equipe nacional. Por outro lado, o início da participação brasileira na Copa da França não foi apenas marcada por momentos de euforia ou otimismo. Alguns problemas foram surgindo, fazendo com que emergissem contradições em cima do modelo ideal que estava sendo gestado, que apontava a formação de uma delegação forte e disciplinada, com a função de mostrar o Brasil e o seu povo para o resto do mundo. Com selecionado já convocado, começava a preparação da equipe, concentrada em Caxambu, no estado de Minas Gerais. Depois de muitos dias de convivência, e com a proximidade do embarque para a França, surgiu uma grave crise envolvendo os jogadores e a direção da CDB. Essa crise teve um importante desdobramento quando os jogadores fizeram uma série de reivindicações à entidade máxima do futebol brasileiro. Vejamos o documento que materializou essas reivindicações:
"Sr. Presidente da Federação Brasileira de Futebol: Dentro da prática de um futebol profissional, nada mais lógico do que esses pedidos dos jogadores do selecionado brasileiro. Porém, essa questão não era tão simples quanto se poderia supor. Apesar de oficialmente profissionais desde 1933, os jogadores que brigavam por salários, prêmios ou por transferências vantajosas, eram muito mal visto. Parte da imprensa esportiva chamava os jogadores que discutiam e exigiam contratos melhores como mercenários, sem qualquer relação sentimental com o clube ou a torcida. E o momento também não era o mais propicio para reivindicações. Tratava-se de um momento especial, tanto que o presidente da Federação Brasileira de Futebol, o Sr. Castello Branco, afirmava que havia feito "(...)um convite à senhorita Alzira Vargas, que servirá de madrinha do 'scratch' e pude verificar que aceitou satisfeita." 6 E o mesmo dirigente vai se manifestar sobre o problema que se criou em torno do documento reivindicatório dos atletas da seleção: "(...) Foi essa a única nota desagradável da concentração. Não tomei conhecimento oficial do assunto, pois somente o sr. Luiz Aranha poderá resolver um caso dessa natureza. Discordo em princípio dessa pretensão do jogadores, que terão na Europa, as diárias e todas as despesas pagas (...) O importante dirigente do futebol do Brasil mostrava-se muito contrariado pelas exigências feitas pelos jogadores. Cabia à CBD, conforme palavras do Sr. Castello Branco, manter a disciplina, que para aquele momento deveria ser entendida de forma simples: os dirigentes mandavam e os jogadores obedeciam. Não havia espaço para atitudes atrevidas. Ou seja, como falar em vantagens materiais, diante de uma batalha eminente? Por outro lado, anunciavam-se as transmissões radiofônicas da Copa, que representavam um impulso a mais em toda a euforia que marcava a ligação dos torcedores brasileiros com a disputa de campeonato tão importante; tratava-se de uma grande novidade: pela primeira vez os brasileiros escutariam a narração de jogos de futebol diretamente da Europa. É possível imaginar os esforços feitos pela Rádio Clube do Brasil para conseguir os direitos de transmissão, já que cada partida, que se utilizaria de linha telefônica, custaria por volta de 100 contos8, quantia nada desprezível, ainda que fosse dividida entre as rádios retransmissoras.
Año 3, Nº 10. Buenos Aires. Mayo 1998 http://www.efdeportes.com |